Quinta-feira, 28 Março

«Julieta» por André Gonçalves

Pedro Almodóvar sempre aproveitou o passado das suas personagens nos seus melodramas ditos “telenovelescos” como método de narrar em vários tempos, e a partir deles ocultar factos do espectador. “Má Educação“, “Volver – Voltar“, “A Pele Onde Vivo“, “Fala com Ela“, “Tudo Sobre a Minha Mãe“, “Abraços Desfeitos” – todos eles variaram sobre esta apresentação temporal em tom enigmático, guardando para a segunda metade as surpresas que tanto nos atingiram emocionalmente.  

Julieta” é um objeto deveras estranho de decifrar ao primeiro visionamento. É de tal modo uma depuração deste dispositivo narrativo de trás para a frente, com uma carga simbólica tão forte que só é entendida em retrospetiva, que nos deixa imediatamente a querer rebobinar, com a certeza quase absoluta de que um segundo visionamento, contra as indicações de Pauline Kael, é neste caso obrigatório, e benéfico. 

Não há aqui o orgasmo imediato de outros tempos. Por um lado, este pode ser o Almodóvar mais emocionalmente contido dos seus melodramas (o silêncio da trama gera um clímax mais interno que externo, acentuado com um final em suspenso). Por outro lado, o acentuar dos seus traços autorais representará para alguns (incluindo o meu colega Hugo) o descarrilar deste método, o fim da linha, e consigo perceber porquê, sinceramente. Desta vez, o inesperado é mais expectável, o clímax é, lá está, mais contido. Já as coincidências a ligar passado e presente parecem mais explícitas. 

No seu 20º filme, o realizador mais internacional de Espanha decidiu adaptar três contos de Alice Munro (“Chance“, “Soon” e “Silence” da coleção “Runaway“), embutindo-os no seu estilo inconfundível, tão inconfundível que soará, lá está, a repetição aqui e ali. 

De volta temos “as cores de Almodóvar” (como Adriana Calcanhoto apelidava) dominadas pelo seu tradicional vermelho que aqui é sangue, perigo, amor (tatuado), e… culpa carregada. A culpa humana é aliás o tema central aqui, um sentimento que acaba por se insinuar como genético, de tal forma se propaga de mãe para filha, com uma geração a repetir as ações da anterior. O cineasta obviamente já tinha ruminado sobre este tema ao longo da sequência de filmes acima citada, mas é em “Julieta” onde o tema é depurado e posto em primeiro plano, pontuado como sempre pela banda sonora extremamente visível de Alberto Iglésias.

Ao reencontrar uma ex-amiga de infância da sua filha que finalmente lhe dá notícias sobre esta, Julieta cancela todos os seus planos de se mudar com o seu namorado para Portugal, para entrar numa espiral de recordações silenciadas, internalizadas. O retiro por tempo indeterminado da sua filha serve como mistério principal para ser desvendado ou entendido na segunda metade da narrativa, conforme o espectador já espera, lá está. 

Julieta é interpretada por duas atrizes (Adriana Ugarte e Emma Suárez) em dois tempos: na juventude e na fase adulta. Para além das performances extraídas, trata-se de uma excelente decisão de “casting“, totalmente aproveitada por Almodóvar. Numa sequência prestes a figurar no lote de “icónicas” da sua filmografia, Ugarte e Suárez fundem-se de uma forma tão natural no mesmo espaço que nós próprios nos sentimos a envelhecer instantaneamente com a personagem.  

Com tanta ênfase nos seus símbolos e com tantos ecos do passado a darem uma imagem de repetição, de “dejá vu” (uma imagem apropriada a esta história espelhada, diga-se), dificilmente “Julieta” seria visto como a sua obra mais consensual à partida. Mas olhe-se mais de perto, e vemos um Almodóvar ainda mais amadurecido que o costume, mais contido que excessivo (os seus excessos são aqui sempre em prol da simbologia). Claro que o “contra” de se ser um autor tão regular e tão obsessivo nos seus temas é precisamente a excessiva comparação com as obras anteriores, a ideia de que “se está a repetir” com efeitos menores. Mas acredito genuinamente que “Julieta” tomará benefícios com a passagem do tempo que tanto evoca, quando as expectativas forem diferentes, quando não formos capazes de julgar tão linearmente uma filmografia.   

O melhor: Almodóvar a ser Almodóvar

O pior: Almodóvar a ser Almodóvar

André Gonçalves

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