Sexta-feira, 26 Abril

No “divã” com Manele Labidi, realizadora de “Antidepressivo Árabe”

Melancólico na busca de uma mulher pela sua identidade, mas repleto de humor, Antidepressivo Árabe chega aos nossos cinemas esta semana.

Antidepressivo Árabe (nome português), Un Divan à Tunis (nome francês), Arab Blues (nome internacional). Três nomes, o mesmo filme: uma comédia com toques dramáticos em que uma mulher de ascendência tunisina visita o país e aí permanece para abrir um consultório de psicanálise.

Mas como é a psicanálise vista num país como a Tunísia, a superar os efeitos da Primavera Árabe e ainda agarrada às tradições? A realizadora em estreia Manele Labidi responde nesta obra protagonizada pela franco-iraniana Golshifteh Farahani, que ainda recentemente vimos nas nossas salas em As Filhas do Sol, onde era uma guerrilheira que lutava contra o Daesh.

Foi em Paris que nos sentamos no “divã” com Manele Labidi e ela nos explicou como construiu o seu filme e dos desafios que a sociedade tunisina enfrenta no pós-revolução.

Existem nos últimos tempos alguns filmes, como este seu Antidepressivo Árabe ou Noura’s Dream, que abordam o facto de ter existido uma revolução na Tunísia, mas que ela não mudou muito as liberdades pessoais das mulheres no país. Era essa uma das suas intenções para este filme?

No meu filme abordo também a questão dos homens. A Tunisia é um país muito especifico, comparativamente a outros países árabes no que diz respeito às mulheres. As mulheres têm certos direitos que foram implantados logo na década de 1950 após a saída do domínio francês, por isso, comparativamente a outros países do mundo árabe, as mulheres têm um estatuto muito mais avançado em termos de direitos.

A revolução teve um impacto na esfera política, mas falta ainda a revolução pessoal, individual. Nós tivemos uma revolução coletiva, mas a pessoal ainda está a decorrer, quer para os homens, quer para as mulheres.

No meu filme não quis retratar as mulheres como vítimas, abordagem usada em quase todos os filmes passados no mundo árabe, mas apresentar mulheres fortes, apesar das dificuldades. Na Tunísia, não interessa a classe social em que estejas, as mulheres estão presentes na vida pública, na política, no cinema – por exemplo, vemos muitas cineastas no país atualmente sem esforço suplementar. Quis fugir da moda dos filmes da mulher oprimida pelo véu islâmico ou marido. Não se trata de homens vs mulheres e nem tudo é sobre extremismo, fundamentalismo ou terrorismo. Todos estes temas estão no meu filme, mas no pano de fundo. Quis focar-me em algo mais casual, centrar-me em assuntos que as pessoas se identificam facilmente. Curiosamente, centrando-me nesses tópicos do dia a dia, paradoxalmente torno o filme mais político. Esse foi o meu grande desafio.

Quis com isso mudar um pouco a perspetiva das pessoas sobre os árabes e o seu mundo?

Sim, particularmente na Tunísia espero que as pessoas sejam encorajadas a ter orgulho no que são. Eles sofrem com os estereótipos que o mundo ocidental lhes atribui. E espero que as pessoas do ocidente vejam que as da tunisia não são assim tão diferentes delas. Por exemplo, eu usei música italiana, pois existe uma ligação antiga – de grande proximidade – entre os dois países. E os tunisinos adoram a cultura italiana e francesa. Ao evitar usar música oriental, os temas italianos foram uma forma de um fazer uma ponte entre os dois países. Mais que fazer um filme árabe, muçulmano ou magrebino, quis fazer algo mediterrânico. Creio que por um momento devemos parar e abordar e não apenas mostrar as coisas antagônicas entre os dois mundos.

O filme foi todo filmado na Tunísia?

Sim.

Houve algum tipo de restrições para filmar? Podia fazer o que queria?

Sim, não houve qualquer tipo de censura. Tínhamos todas as autorizações e houve uma parceria com uma produtora tunisina, que nos ajudou a conseguir todas as licenças para filmar. Foi tudo muito fácil, o único desafio foi mesmo o tempo, pois estavam 45ºc todos dias.

E como foi o trabalho com a Golshifteh na criação da psicanalista?

Ela foi a única atriz a quem enviei o guião. Eu sabia que os atores secundários seriam coloridos, faladores, energéticos, com a sua dinâmica mediterrânica. No caso da protagonista, queria alguém diferente, que se afastasse desse grupo, fosse muito carismática nos momentos de silêncio, alguém que transmitisse a sua capacidade de ouvir os outros – o que é muito difícil de mostrar na interpretação.

A Golshifteh faz-me lembrar a Katherine Hepburn, pois é glamourosa, linda, mas simultaneamente transmite algo de viril. Ela é uma mulher e um homem simultaneamente, ela tem este poder, esta força. Esta personagem é muito semelhante aquilo que ela é na vida real, até porque sei o que ela passou, as suas questões sobre identidade, a dificuldade em definir a “sua terra”. Sabia que ela ia preencher completamente a minha personagem. Falamos muito e ela trabalhou bastante para dar uma maior complexidade à personagem, até porque ela chega a um local que demonstra alguma hostilidade no início.

Muitas pessoas perguntaram-me porque ela não sorria mais, já que o filme é uma comédia, porque não procura o amor de maneira mais explícita . Eu disse que não, pois o amor não é de todo o foco do filme. O centro é alguém a tentar descobrir o seu caminho, reparar algo que provavelmente os pais dela perderam quando migraram do país. A busca pela autorização [de praticar psicanálise] é uma forma dela mesmo ter autorização de fazer parte daquela comunidade.

Como é o mercado para a psicologia na Tunísia?

Temos cada vez mais psicólogos, mas psicanalistas é um mercado ainda muito marginal, usada pela classe social mais privilegiada. Mas as pessoas estão cada vez com a mente mais aberta, pois a revolução e a crise criou vários traumas. E falam também mais abertamente sobre frequentarem especialistas, de precisarem mais de ajuda, às vezes religiosa, outras vezes de algo mais esotérico, mas igualmente no campo da psicologia e psicanálise.

Quanto de si encontramos nessa personagem?

Há semelhanças, mas claro que não é nada total. O que achei mais próximo talvez seja o objetivo que ambas temos de contribuir com algo para o país dos nossos pais. Os meus pais abandonaram o país nos anos 70 e foram para França, pois não tinham oportunidades para trabalhar. Quando és criança e testemunhas algo que não é justo, vês os pais irem para um país que não tem os mesmos códigos que o teu, e quando regressam à Tunísia são tratados como estrangeiros. Por isso, quando decides ir para esse país dos teus pais, não tentas só provar a ti mesmo que consegues lá viver, mas igualmente “reparar” esse vínculo.

O que vemos é uma mistura de realidade e ficção. Eu cresci em França, em casa falávamos árabe, e voltava todos os anos à Tunísia no verão, durante três meses. Curiosamente e coincidentemente, filmamos exatamente no mesmo sítio, o que me permitiu dar de caras com alguma da minha família.

E como foi a reação deles ao verem-na lá?

Foi boa e estavam orgulhosos, mas claro, gozam contigo e dizem que não és tunisino. Falas árabe, pareces tunisino, mas tem o passaporte francês. Esquece, não és tunisino [risos]

E nenhum deles foi figurante no filme? [risos]

Não, mas queriam [risos]

E o filme vai ter estreia lá?

Vai ser exibido, provavelmente na primavera, mas foi apresentado no Festival de Cartago e foi muito bem recebido. Riram bastante e perguntaram-me muito como é que eu sabia como as coisas funcionavam no país, especialmente na função pública, como aquela personagem da mulher que trabalha num cargo público mas que vende lingerie a quem a visita. [risos]

Ia-lhe perguntar isso, pois tenta mostrar um país que tenta implantar “regras”, mas simultaneamente tem uma série de personagens atípicas, como essa que referiu. Onde se inspirou para as construir? O homem que sabe karaté é outra dessas personagens atípicas [risos]…

As coisas são assim [risos]. No caso dos lugares da administração pública, às vezes os que lá trabalham tentam vender-te coisas. A vida é dura, economicamente, para um funcionário público, ou um professor, por isso eles têm duas ou três atividades paralelas. Tens de te desenrascar, sobreviver. Esta mulher que vende lingerie é um caso assim.

Quanto ao homem que sabe karaté, foi curioso. Ele filmou outras cenas e quando foi chamado para filmar mais  ficou triste do seu papel ser simplesmente estar numa fila. Então disse-me que sabia dança clássica e kung-fu, por isso – numa decisão à última da hora – decidiu-se que ele entraria também na luta que acontece. Foi engraçado. São engraçados estes “acidentes”…

Para além dessas personagens, as outras são baseadas em pessoas que conheci e me cruzei, muitas vezes apenas uma vez. Misturei-os com elementos de ficção Sou francesa e tunisina, por isso estou dentro da cultura do país e ao mesmo tempo não estou, como eles insistem em dizer.

Sempre foi um objetivo seu fazer o seu primeiro filme na Tunísia, ou seja, durante a sua vida sempre pensou em fazer algo assim?

Eu sabia que queria que o meu primeiro filme fosse feito na Tunísia. O país sempre me inspirou muito, a minha família também. A complexidade que sempre encontrei neles em combinar o moderno e a tradição. Foi uma fonte de sofrimento para mim, durante algum tempo, mas depois percebi a riqueza de estar no meio de duas culturas, dois mundos. E quando visito o país fico sempre agarrada á sua forma cinemática. A luz, as ruas, as pessoas. A forma como eles falam, gritam e depois abraçam-te em poucos segundos de diferença. Esta energia era algo que queria transformar em filme. Quando a revolução aconteceu, encontrei o ângulo. Pensei, o filme vai-se passar depois da revolução e lidar com a forma como as pessoas começaram a falar dos seus problemas sem controle. Por isso escolhi a psicanálise como ângulo para o desabafo de um país.

E investigou a psicanálise?

Na verdade, já fiz psicanálise [como paciente] há vários anos. Há muito tempo, quando disse à minha mãe que ia ver um psicólogo, ela ficou chocada. Do estilo: “estás a falar de mim a alguém que eu não conheço? Pagas em dinheiro e ele é judeu?” [risos] Isso era demais para ela [risos]. Na Tunísia existe mais reticência em relação à psicanálise, do que na Europa, pois tens tabus, a religião, e as tradições. O pai e mãe são sagrados.

Simultaneamente, não queria criar algo cruelmente opositor a esse sentimento. É certo que existe uma procura para esses serviços de psicanálise e mesmo que não te digam que estão a ser acompanhadas por alguém, já falam e veem as coisas de forma mais descomplexada.

Espera que com o sucesso deste filme, que passou por Veneza, seja mais fácil fazer o próximo projeto?

Sim, é melhor ter reconhecimento que não ter, e espero que me ajude a fazer o segundo filme. Em França é sempre mais difícil fazer o segundo filme. O país tem financiamento muito específico para o teu primeiro filme, por isso o segundo é sempre mais complicado, pois concorres [a financiamento] com os grandes nomes.

E já tem algum projeto em mente?

Sim, tenho vários. Estive muito obcecada com este projeto, a dar em doida mesmo [risos]. Por isso, quando tens só um, ficas muito obcecado. Agora tenho várias ideias que estou a desenvolver em paralelo. Claro, há um mais importante que os outros, mas tento diversificar e não desenvolver esta obsessão.

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