Ventos ainda perfumados ao CO2 das motas de Easy Rider empurraram o italo-americano Sylvester Stallone a um pódio que a Cultura Pop viu nascer no meio a consolidação do thriller social (Taxi Driver, O Vigilante, Um Lance no Escuro) como género: coube a ele o nº1 na escalada da representação gráfica da violência como um parâmetro de estudo da Moral.

A fortíssima expectativa comercial que hoje cerca a chegada do doído Rambo – A Última Batalha (Rambo: Last Blood) é a reciclagem simbólica desse lugar estilizado de reflexão que cerca a sua persona. Essa reflexão é um incómodo para muitos, mas um fascínio para outros tantos, gerando uma fortuna crítica farta em torno da sua produção audiovisual. Rambo ganha status de cowboy em The Ultimate Stallone Reader – Sylvester Stallone as Star, Icon, Auteur, organizado pelo professor Chris Holmlund, da Universidade do Tennessee, com o apoio de um corpo docente de teóricos das maiores faculdades dos EUA.

Obrigatório como reflexão sobre a evolução comportamental dos géneros, a partir do audiovisual, o livro, publicado pela Wallflower Press, começa com um mapeamento dos bilhões que Stallone rendeu para os estúdios americanos, seja em fenómenos como a franquia Rocky quanto em produções de menor rentabilidade (mas marcadas pela adoração popular) como O Lutador (Over The Top, de 1987). Fala-se o mesmo do velho soldado na seara documental dos EUA.

Num misto de genealogia da moral cinéfila com reflexão antropológica, um par de documentários relacionados à figura do pugilista Rocky Balboa revivem um trecho pouco analisado do cinema americano dos anos ’70 – tempo da chamada Nova Hollywood ou Easy Rider Generation – no qual valores e virtudes da era clássica dos EUA nos ecrãs voltam à tona, contrariando o turbilhão contracultural, quase sempre de esquerda, do início daquela década. Ambos dirigidos por Derek Wayne Johnson, os dois filmes em questão são The King of Underdogs e 40th Years of Rocky – The Birth of a Classic. O segundo explica-se pelo título: bastidores do sucesso de 1976, que deu aos contos de fada uma dimensão social, numa espécie de Cinderela de luvas de boxe. Já o primeiro é uma investigação sobre a trajetória de sucessos de John G. Avildsen, o realizador que transformou Stallone em estrela e que faria ainda a franquia Karate Kid, outro marco das telas. Nesses documentários, entende-se a génese de Rambo e o lugar que ele hoje ocupa.
Neste novo filme, esse lugar é um lugar de dor profunda… e de fim.

Imagens documentais de arquivo da guerra do Vietname rasgam a pele ficcional de Rambo: A Última Batalha, de um inusitado para os padrões memorialísticos da franquia, como num balizamento de factos históricos. Factos que moldaram a sangue o barro do qual John Rambo é constituído. São espasmos, vestígios de um pretérito imperfeito que ele doma com comprimidos de um frasco laranja. Pretérito que fica cada vez mais presente graças a uma falha – da Natureza – ocorrida numa operação informal de resgate realizada por ele no preâmbulo do quinto filme de uma saga aberta em 1982.

No meio de uma chuva, o ex-combatente, hoje radicado no rancho da sua família, tenta salvar pessoas de uma inundação, no meio de uma tempestade, mas falha. Não é a idade que trava a sua eficiência, mas sim o clima e o relevo. A paisagem é bem diferente das selvas da Ásia onde ele inscreveu a sua coragem na pedra da imolação. Falhar agora parece ser um verbo inerente à sua rotina, afinal, já há sete primaveras no seu corpo… ou melhor, sete outonos, pois nada mais parece florescer na alma de Rambo, fora uma sobrinha amada, a estudante Gabrielle (Yvette Monreal). Com ela há um vínculo que mantém pulsante o resto de coração naquele corpanzil animado pelo carisma grisalho de Sylvester Stallone.

A Última Batalha, o novo Rambo, preparou a sua estreia a partir da passagem pelo ator no Festival de Cannes de 2019, em maio, a fim de alcançar circuitos globais em 19 de setembro. E esse alcance contou com a mais requintada operação dos media da carreira da estrela em anos. Numa era dominada por super-heróis, num ano onde um único filme de ação à moda antiga (Assalto ao Poder, com Gerard Butler) dominava as salas de projeção, às vésperas da volta de Rambo, Stallone ofereceu às plateias o ocaso do heroísmo OMAC (One Man Army Combat), o Exército de um Homem Só.

O seu Rambo, cansado de guerra feito “Tereza Batista”, lembra do Vietname não mais na primeira pessoa, como se viu na obra de Ted Kotcheff, revivendo as torturas lá experienciadas: a memória da guerra agora se dá como documento. Passaram-se dez anos desde o quarto Rambo (2008). Pouco se fala sobre os embates entre as matas vietnamitas e o seu cheiro de napalm. Agora estamos com combates nos cartéis da América Hispânica, que fica bem ao lado do seu rancho.

O CEP do inimigo agora é mexicano, mas não por uma alteridade racista, mas sim por impunidades das mais diversas. “A polícia de lá nada faz“, diz o herói, numa cena de perplexidade, quando a sua Gabrielle é levada dele e transformada em refém de traficantes de escravas sexuais. Como responsável pelo bem da jovem, o seu papel paternal de tio que cuida, Rambo precisa ir atrás dela e encarar todos os males do mundo torto que se edificou em uma época sem ideologias. É dever dele copiar um outro “tio” lendário da ficção, Ethan Edwards, vivido por John Wayne em The Searchers (A Desaparecida, 1956).

Como Edwards, um herói vencido da Guerra de Secessão dos EUA, Rambo também ostenta medalhas de derrota – e não se trata da jovem que a chuva levou, no início do filme. Ali era só mais uma rapariga. Agora, no México, vem o vendaval. Os ventos que sopravam contra o cowboy soldado de Wayne carregavam o bafo do racismo, numa reflexão do cineasta John Ford contra o racismo institucionalizado contra os índios: era uma tribo que roubava a sobrinha de Ethan. Agora, a Natalie Wood desta “crónica de uma morte anunciada” (a morte do heroísmo pop do cinema de ação clássico) não é cercada de conflitos raciais. Não há uma perceção de valores excludentes contra o povo do México. Gabrielle é de lá, assim como a senhora que a educou, Maria (Adriana Barraza). O perigo não vem da língua espanhola imposta pela colonização: o risco vem do tráfico, do submundo organizado. É ali que John Rambo vai se meter. E é uma floresta tão densa quanto as do Vietname, mas sem combustíveis da Guerra Fria, sem Este contra Oeste. Há só ruindade. “Tu não sabes o quanto de Mal pode existir no coração dos homens”, avisa Rambo à sua querida menina.

Essa perceção dele, estruturada pela direção sólida de Adrian Grunberg, como um juízo moral de quem feriu-se demais, aumenta o amargor que perpassa toda a narrativa – de adrenalina crescente. Com a mesma desenvoltura informal que imprimou em Apanha-me Esse Gringo (2012), com Mel Gibson, Grunberg tira a cinessérie Rambo da zona de conforto do épico e dá ao quinto tomo das peripécias do herói um tom de filme B. Da maquilhagem à direção de arte, com direito a um coração eviscerado a tapa, nada dispõe do verniz plástico dos tempos de Kotcheff e George Pan Cosmatos (o realizador do Rambo II – A Vingança do Herói). Em A Última Batalha, temos um The Searchers talhado na cortiça, áspero, com farpas.

A fotografia de Brendan Galvin (Atrás das Linhas Inimigas) dispensa o charme do chiaroscuro e aposta no ocre, deixando o sol raiar só nas poucas cenas de placidez. Com o seu esqueleto banhado pelo adamantium da brutalidade, Rambo sabe o valor singular de apreciar um amanhecer. Ele é um cowboy… como Ethan Edwards. Como ele, Rambo aprendeu, um dia, a homilia de Gary Cooper em O Comboio Apitou Três Vezes (High Noon): um homem tem que fazer o que um homem TEM que fazer. Mas, antes, o verbo “ter” rezava pela desinência de uma pátria amada. Mas essa sua pátria hoje vive acossada pelo crime, pela corrupção, pelo sucateamento da Justiça como um valor inerente ao processo civilizatório. Talião é criminoso, mas do que os bandidos que furam a sua pele e a sua carne: o dente por dente é um delito grave.

Num mundo como esse… da aridez da ternura… do desdém com o velho modelo do lobo que se tornou solitário pela desatenção das matilhas… não há lugar para old men. Rambo é uma relíquia de um museu condenado (ao gueto nerd… ao gueto pop). Restar-lhe-ia errar. Mas há coisas que ficaram guardadas noseu porão. E eles não têm idade. E não respeitam os jugos do moralismo. Pontiagudas como a sua faca afiada, essas coisas, ainda selvagens, talvez possam ser chamadas de “barbárie”, assim com o mesmo B dos filmes que esnobam a geometria da pedra polida. Rambo: A Última Batalha é pedra lascada. Mas diante da civilização que temos hoje, desleal com a tradição, que barbarismo é o seu, senão a resiliência… a poesia triste e trágica da resistência.