Sexta-feira, 26 Abril

Abel Ferrara na nostalgia do real e na fúria de seguir em frente

 

Enquanto aguarda a tardia estreia de Pasolini (2014) nos EUA, a crítica americana tem vários caminhos para refazer as suas opiniões (sobretudo as equivocadas ou apressadas) acerca da obra de Abel Ferrara, começando com a projeção do seu novo filme, o documentário nostálgico The Projectionist, nesta terça-feira, no Festival de Tribeca.

A opção seguinte é mergulhar na retrospectiva de sua obra que o MOMA inaugura nesta quarta-feira, dia 1º de maio, e que fica por lá até o fim do mês. Em paralelo, os jornalistas norte-americanos que passarem por Cannes de 14 a 25 de maio vão conferir a sua ficção mais recente (e mais autobiográfica): Tommaso, com o seu parceiro do “crime”, Williem Dafoe. Ele tem mais um projeto para fazer, este ano, com Nicolas Cage e Isabelle Huppert, baseado nos escritos de Jung, que terá cenas rodadas nos Estados Unidos. É um meio de o cineasta de 67 anos, maldito por escolha temático e cultuado por excelência, manter-se atualizado sobre seu país de origem, com o qual começou a romper laços após a ressaca política do 11 de Setembro.


The Projectionist

Existe um espaço para a imersão nas angústias existenciais no meu cinema que revela em algo bem próximo da fé. Filmo histórias de pessoas que estão à procuran de entender. A imolação nada mais é do que uma forma de encontrar paz consigo mesmo. Por isso, eu sempre abordo personagens sedentos por autoentendimento, a fim de resistirem ao mundo. Tenho interesse pela habilidade que muitas pessoas ainda têm de crer no Altíssimo ou seja lá no que for. Acredito que exista o Absoluto, em parte por conta das minhas origens italianas cristãs. Os Dez Mandamentos crescem connosco. E Pasolini em O Evangelho Segundo São Mateus revisitou de modo poético o Evangélico. A crença que o meu berço me deu no mistério do Céu foi seguida pela crença no Cinema, que veio de Pasolini e de outros. Os cineastas que fizeram a cabeça dos meus contemporâneos, como Buñuel, Rossellini e John Cassavetes ensinaram-me a valorizar a liberdade criativa. Mas Pasolini foi o Santo Graal do cinema, capaz de fazer da sua própria morte uma catarse política da moral burguesa“, disse Ferrara ao C7nema num par de conversas longas e generosas, um em Cannes (2017), outro no Rio de Janeiro (2012).

Uma das suas longa-metragens mais concorridas de Tribeca, The Projectionist é uma radiografia do wildest side de Nova Iorque, a partir das histórias de Nick Nicolaou, um exibidor de filmes que começou na cena adulta. Ele é uma memória viva das transformações da cidade e permite que Ferrara reviva os seus dias como cinéfilo nas salas arthouse de NY, assistindo Satyricon de Fellini.

Na visão estética que persigo, todo o filme é um documentário, a partir do momento que tenta reproduzir uma realidade, seja ela qual for. Mesmo uma ficção ganha status documental no seu empenho de realizar um registro humano. O que mudou, nos tempos em que eu comecei, ainda na fase da película, é a tecnologia digital. Novas câmaras e computadores permitiram que pessoas como eu tivessem o direito de seguir em frente. Vi muitos artistas as terem as suas obras interrompidas por falta de dinheiro no cinema, mas também na música, na pintura e na poesia. Hoje, só é preciso de um telemóvel para fazer um filme. Isso do ponto de vista mecânico. Pois em relação à argamassa ética e poética do cinema, tudo só depende de paixão“, disse Ferrara. “Eu fiz TV numa época em que ‘Miami Vice’ era uma renovação. Era uma época antes de Don Johnson aparecer. Era uma época em que uma série desejava ter como estrela um músico que tocava gaita chamado Bruce Willis de quem ninguém tinha ouvido falar. Saudade daquela ousadia que cabia na televisão“.

Personagens como “o projecionista” Nick Nicolaou, que vai tornar celebridade em Tribeca, é parte da horda de amores de Ferrara. “Filmo com espírito de equipa porque gosto de parceiros que se arriscam a experimentar“, disse Ferrara em Nova Iorque.

Nesta segunda-feira, Tribeca chacoalhou de medo com Swallow, uma espécie de Carrie dos anos 2010. Thriller concebido no limite entre o suspense psicológico (à la Repulsa) e o horror, a longa-metragem de Carlo Mirabella-Davis fala de uma obsessão na gravidez nada comun. No enredo, Haley Bennett é uma jovem grávida que tem uma vida perfeita até o momento em que engole um berlinde. Dali para diante, ela vai desenvolver uma compulsão por engolir objetos inusitados. Essa “fome” desmedida tem conexões com um segredo terrível, que pode libertar os seus demónios.

Tribeca segue até 5 de maio. Até ao momento, na mostra de novas atrações indies dos EUA, Gully continua sendo a ficção mais possante entre as obras exibidas no festival, tendo o brasileiro Adriano Goldman como seu diretor de fotografia. Ao longo dos seus 90 ásperos minutos, o drama dirigido por Nabil Elerdkin acompanha o quotidiano de três amigos em uma Los Angeles pautada pela violência. O racismo é um dos focos do enredo, que aborda o abuso sexual de um adolescente afro-americano por um intelectual branco. Entre os concorrentes a prémios vistos de quarta-feira até agora, nada foi mais poderoso. O seu maior rival é Burning Cane, de Phillip Yousmans: painel do dia a dia na Louisiana, tendo entre os seus eixos narrativos o dilema de um pastor negro (Wendell Pierce, em atuação memorável) que perdeu a mulher.

Burning Cane

Entre os documentaristas do evento, a estrela de Nova Iorque é o veterano Werner Herzog, que encheu salas na sexta-feira com seu crítico Meeting Gorbachev, já exibido no Brasil pelo festival É Tudo Verdade. Esta semana, o alemão radicado em Los Angeles – onde leciona e faz documentários para a TV – volta a provocar Tribeca com um segundo título no festival: Nomad: In the Footsteps of Bruce Chatwin.

Numa curva antropológica similar aos grandes filmes do realizador nos anos ’70 e ’80, a produção resgata as memórias do escritor inglês responsável por livros de viagem celébres pela sua riqueza literária e etnografia como In Patagonia (1977). Chatwin (1940-1989) deixou como herança para o seu amigo germânico responsável por cultos como Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972) a mochila que o acompanhava nas suas andanças pelo planeta, em expedições arqueológicas e paleontólogas. O que Herzog propõe é uma revisão das recordações que o autor britânico colecionou, esmiuçando as loucuras dele, como fez no seu seminal Grizzly Man, de 2005.

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