Sábado, 18 Maio

A notável (e esquecida) “América” de Garrett Bradley

América está em competição no Curtas Vila do Conde

De 1876 a 1965 vigorou nos EUA a chamada lei Jim Crow, legislação local e estadual que institucionalizou a segregação racial, afetando afro-americanos, asiáticos e outros grupos étnicos. Foi neste período – mais propriamente em 1913 – que um diretor caribenho, Bert Williams executou Lime Kiln Club Field Day, projeto com um elenco totalmente negro e uma equipa de produção interracial que nunca foi acabado e que durante mais de 100 viveu na obscuridade. Foi em 2014 que o MoMA restaurou e divulgou o filme.

Na verdade, segundo a Biblioteca do Congresso norte-americano, estima-se que 70% de todos os filmes feitos nos Estados Unidos entre 1912 e 1929 tenham desaparecido e que muitos deles terão sido assinados por artistas afroamericanos. É aqui que entra Garrett Bradley, jovem cineasta que com o seu America procura desafiar a ideia de que o cinema negro se enquadra numa “onda” ou um movimento específico no tempo, propondo, ao invés, um trabalho contínuo, simultâneo e integrante do próprio conceito de cinema americano. “O cinema negro, antes de tudo, é o cinema americano – pelo menos na América (…) É uma realidade contínua, paralela e simultânea“, disse Bradley em Sundance à Film Comment, aquando da apresentação do seu filme na secção New Frontier.

Misturando imagens de Lime Kiln Club Field Day com 12 curtas-metragens enraizadas em Nova Orleães, a realizadora que saiu premiada de Sundance em 2017 com o intenso Alone evoca esses filmes perdidos, começando em 1915, com The Birth Of a Nation, até 1926, quando Bessie Coleman – a primeira mulher de ascendência africana a conseguir licença como piloto internacional – foi projetada do seu avião para a morte.

É um trabalho absolutamente marcante (arrepiante mesmo), onde fotografia e cinema se cruzam em 30 minutos de um preto e branco hipnótico apresentado através de um vasto conjuntos de planos onde atores locais de Nova Orleães, cidade berço da cineasta, emergem e dão vida a uma forma de cinema de arquivo ou documental, sempre acompanhados por uma banda sonora emersiva de Trevor Mathison, um dos membros fundadores do Black Audio Film Collective.

Para escolher as imagens do Lime Kiln Club Field Day para incluir na curta, Bradley passou a pente fino por cada frame do filme de Bert Williams para encontrar momentos que não seriam visíveis aos olhos a 17 frames por segundo. Bert Williams e a sua obra são assim “um ponto de partida” para uma série curtas-metragens filmadas em 35mm e depois transferidas para vídeo, onde não falta a exploração da beleza e do tom sinistro de um lençol branco ou o surgimento da Liga Nacional Negra de Beisebol em 1920.

E nesse retrato que pretende preencher as lacunas e ausências forçadas do passado cinematográfico da América, o corpo energético de atores faz um retrato do passado, mas também do presente. O resultado é absolutamente notável.

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