Terça-feira, 19 Março

«Sharp Objects», a minissérie HBO que devemos “ouvir” com muita atenção

Sharp Objects, uma minissérie sobre a América profunda, dramas familiares, patologias aterradoras e polida com uma banda sonora eximia.

Nota: o texto que se segue contém spoilers sobre a série e o livro Sharp Objects.

A série HBO é baseada na novela homónima de Gillian Flynn, Sharp Objects (Objetos Cortantes). Protagonizada por Amy Adams, que interpreta a jornalista Camille Preaker que após vários anos regressa à sua pequena cidade natal, a fictícia Wind Gap, para investigar os homicídios de duas jovens raparigas. O desafio da jornalista é colossal, pois além da investigação dos crimes vai ser confrontada com um puzzle psicológico que expõe o seu passado e que a coloca numa posição de empatia com as vítimas dos hediondos crimes. O regresso à sufocante cidade leva Camile a sucumbir aos problemas como o álcool, à automutilação e ao relacionamento obrigatório com a mãe, uma figura matriarcal oriunda da pequena nobreza local, interpretada por Patricia Clarkson – dominadora, manipuladora, fria, indigna de confiança e potencialmente má.

Em Sharp Objects há uma série de personagens tipicamente barrocas no estilo, no sentido de que são figuras exageradas, com comportamentos excessivos, incluindo a personagem de Elizabeth Perkins, os membros da família das raparigas mortas, os policias – um local, um oriundo de uma metrópole – e, mais importante, a irmã adolescente de Camille, Amma, interpretada com uma extraordinária lucidez pela australiana Eliza Scanlen.

Numa visão romântica, podíamos dizer que Sharp Objects pode ser considerada uma espécie de filha profana de Gone Girl e de Big Little Lies, e talvez na verdade, é exatamente isso que é. A romancista Gillian Flynn escreveu Gone Girl e o título em causa, Sharp Objects, acumulando também o cargo de ser uma das autoras da série.

Jean-Marc Vallée realizou os oito episódios, enquanto desenvolvia os seis episódios de Big Little Lies. É talvez o intenso trabalho de realização – se tivermos em conta que pouquíssimas séries são (na integra) realizada por uma única pessoa – que é a marca mais distintiva da minissérie Sharp Objects e o estilo que Vallée usou em Big Little Lies é claramente visível neste projeto: flashbacks curtos e nítidos, sendo que muitos são deliberadamente opacos, misteriosos e ocasionalmente assustadores. No entanto, o realizador nunca deixa de parte a linha cronologia do presente. Vallée usa apenas a iluminação natural, várias câmaras de mão (fixas), cenários já pré-existentes e takes longos para alcançar um forte senso de realismo fundamentado e, vitalmente, de pertença ao lugar. Se em Big Little Lies a comunidade costeira era determinante, em Sharp Objects o espectador vive, respira, transpira e sufoca na pequena cidade (fictícia) situada no Missouri.


Ao contrário de Big Little Lies, em que o charme e o aspeto luxuoso / estético de espaços e personagens é determinante, em Sharp Objects os cenários, as figuras e a estética são representadas de uma forma mais fria e distante. A história podia ser contada em menos episódios e isso podia ter sido uma boa opção, pois a narrativa é prolongada sem necessidade. O facto de Jean-Marc Vallée ter optado por fazer tantos episódios (apesar de ser uma minissérie) prejudica em vez de proporcionar a empatia entre o espectador – a história / personagens faz-nos perder algum encanto e o fator surpresa vai perdendo efeito.

Quem leu o livro não terá grandes surpresas, a não ser a omissão ou a inclusão de elementos/histórias ao argumento. Mas no todo, livro e série correspondem. O mistério é suficiente mas é no tom, no senso de humor e nas opções estilísticas obscuras que Sharp Objects tem as mais-valias. Nenhuma destes personagens são do tipo de pessoa que gostaríamos de ter uma relação ou até de receber em casa, mas à sua peculiar maneira, são fascinantes. Amy Adams tem um trabalho exemplar, tal como a experiente Patricia Clarkson. Quase de certeza que ambas farão parte das listas de nomeados à época dos prémios. Apesar de pecar por ser demasiadamente longa, a minissérie HBO é evocativa e fascinante, composta por doses equilibradas de suspense e suntuosa de uma forma quase vitoriana.

Para o fim, ficou guardado, aquele que para a autora destas palavras é o elemento mais bem conseguido do projeto de Vallée, a banda sonora. Se em Big Little Lies, denominei as escolhas musicais da série como a “quarta personagem principal”, em Sharp Objects poderia considera-la como a terceira personagem mais importante do projeto.

Mais do que ser uma série sobre a podridão humana, arrisco dizer que Sharp Objects é sobre música. O genérico inicial mostra a agulha de um gira-discos e a música que toca muda de semana a semana, de episódio em episódio. Camille é uma espécie de DJ hiperativa da sua própria vida, escolhendo melodias no seu iPod rachado enquanto conduz, quando está na cama e na casa de banho. O seu padrasto toca piano e tem uma sala de música com um sistema de som invejável, abrilhantado por uma coleção de discos soberba e a vida social da cidade gira em torno de um bar de karaoke. Quase sempre, a banda sonora é partilhada entre as personagens e os espectadores – todos estão a ouvir o mesmo.

A música expressa o foco da série: é melhor olhar para a escuridão ou escondê-la? Com curadoria de Susan Jacobs, na banda sonora há folk, música eletrónica (de que destaco os magníficos The Acid) e até Led Zeppelin ou LCD Soundsystem, Johnny Cash, Queen e não grandes Mestres da música Clássica.

Em Sharp Objects a música atua como uma forma de Camille se automedicar mas também reflete – ou esconde – a verdade. As mulheres do universo da série foram criadas e educadas para projetar uma determinada realidade: são bonecas em vez de mulheres, são música popular em vez de rock.


Tal como em Big Little Lies, quase todas músicas do drama da HBO são diegéticas – e estão ligadas ao mistério maior e este é o trunfo maior do trabalho de Jean-Marc Vallée.

“I have a meanness inside me, real as an organ. Slit me at my belly and it might slide out, meaty and dark, drop on the floor so you could stomp on it.”  – Amma Crellin

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