Sexta-feira, 29 Março

«Crazy Ex-Girlfriend»: normalizar a doença mental pela arte

Ela é a ex-namorada doida!

[REBECCA]
Esse é um termo sexista!

Ela é a ex-namorada doida!

[REBECCA]
Podem parar de cantar por um segundo? 

Ela está tão destroçada por dentro. 

[REBECCA]
A situação é muito mais complexa que isso. 

E se há algo que Crazy Ex-Girlfriend prova ao longo de três temporadas, é que de facto, a situação aqui apresentada vai sendo revelada como sendo cada vez mais complexa do que o título simplista nos oferecia.

Rebecca Bunch é tão instável como muitos de nós fomos, ou somos, e que a sua odisseia musical em quatro suites (consta-se que tinham sido imaginados desde o início quatro capítulos, ou quatro temporadas) é de facto uma odisseia mais universal do que a “doidice” inicial planeada. À data de estreia desta série, praticamente um em cada cinco norte-americanos apresentava uma doença mental diagnosticada. E isto foi antes de Trump!

Uma dessas norte-americanas, Rachel Bloom, decidiu pegar na sua própria depressão, ansiedade e OCD, e começar a desenhar (juntamente com Aline Brosh McKenna) e posteriormente protagonizar uma série que fizesse justiça a todos os que, em algum momento, se sentiram ostracizados por serem chamados “doidos”, ou por serem condenados a assistir a retratos estereotipados nos media. Ativismo via comédia, portanto. A sua série acaba ironicamente por ser uma obsessão em si: acompanhamos então Rebecca Bunch (mesmas iniciais que Rachel Bloom, lá está), que, após um reencontro acidental com um ex-namorado da adolescência, decide segui-lo até à sua terra natal – tudo normal, pois não é por Josh estar lá acidentalmente a morar que Rebecca move as suas malas, mas sim por ter ouvido que era ali que a felicidade morava. As primeiras duas temporadas focam-se precisamente na sua negação em ver para além da fantasia. Fantasia esta, que se estende em números musicais mais ou menos operáticos (West Covina surgiu um ano antes de La La Land, convém realçar!), mas que quase sempre cumprem a função de avançar a narrativa.

A fantasia chega a um penhasco, porém, no final da segunda temporada… e eis que entra então o terceiro ato (mas não o derradeiro, esperemos. É para renovar, certo? CERTO?). A série sempre foi para além do tratado sobre a doença mental na contemporaneidade, onde não falta sequer múltiplas menções à obsessão nas redes sociais online. Crazy Ex-Girlfriend, a ser definida numa frase, seria mais sobre as mentiras que contamos aos outros… e a nós próprios. E assim, Rebecca oficialmente é posta contra uma parede, apanhada na sua própria espiral de negação, forçada a medidas drásticas. Esta terceira temporada é a que mais reusa temas musicais passados em modo reprise – mas o que aparenta ser à primeira vista uma decisão desleixada, é na realidade uma jogada lógica impressionante no contexto da viagem pessoal da protagonista nesta nova sequência de episódios – tal como esta se prepara para limpar a sua sala mental, não sem antes repetir certos padrões perigosos, também os temas reaparecem, aqui e ali, com alterações na letra ou não, cantados por outros personagens (também eles a precisar de terapia, como todos nós), ou em reprises sem letra, para sinalizar que esta repetição “pop” é também uma repetição de hábitos, onde só mudará o objeto de obsessão.

E por falar em “pop”, eis uma série para rivalizar todas as outras da história recente da televisão no seu conhecimento vasto – com influências só falando dos números musicais que vão de Fred Astaire (Settle for Me) a Justin Bieber (Duh), de Marilyn Monroe (The Math of Love Triangles) a Katy Perry (Feelin’ Kinda Naughty), passando por girl bands ou boy bands de várias eras, não parece haver género intocável dentro do que ficou celebrizado pela cultura popular, ao mesmo tempo que o tom em si pode trazer à memória os picos de insanidade relativa de Ally McBeal – série que também decorria num escritório de advogados, onde a protagonista acabava por sofrer alucinações, muitas vezes musicais. Mas a série de David E. Kelley parece medicada na sua rotina comparada com os altos e baixos que experimentamos aqui, sem grande tempo para lermos o mapa de emoções.

Rachel Bloom conseguiu, independentemente do que venha a acontecer numa tão aguardada quarta temporada, um feito incrível para já: mostrar que “doidos” podemos ser todos nós, em tempos diferentes, tal e qual cada uma das personagens aqui presentes teria o seu diagnóstico psicológico, mais ou menos lightQuando ficamos obcecados durante tempo indefinido por outra pessoa, ou então quando não conseguimos parar de cantar (ou ouvir cantar, na cabeça) Research Me Obsessively quando fazemos uma pesquisa por um perfil no Instagram… Mostrar que é normal se sentir destroçado com os tempos modernos que parecem cada vez pedir mais ansiedade e compulsões obsessivas no falso sincronismo que providenciam. Mas claro, a situação será sempre mais complexa que isso para muitos de nós… 

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