Terça-feira, 19 Março

«Transparent» – uma família muito moderna (a verdadeira)

Também na televisão as primeiras impressões contam muito: ouve-se o genérico e é impossível ficar indiferente. A composição de entrada pertence a Dustin O’Halloran, e foi o meu toque de telemóvel durante mais de 1 ano. Diz-me o teu toque dir-te-ei o que andas a ver?

Transparent, para quem não conhece, vai já na 4ª temporada – aviso: é bem provável que seja a última, dado que as recentes acusações de assédio sobre Jeffrey Tambor (actor central na história) azedaram o até então aparente espírito imaculado que se vivia dentro das gravações. A criadora de série é Jill Saloway (Six Feet Under, United States of Tara). O pai de Saloway é um judeu transgénero, não sendo portanto a temática pura coincidência para a guionista.

Voltando à trama, é o retrato da vida de uma família judia americana da classe média alta, que mora nos subúrbios de Los Angels, o bairro chama-se Pacific Palisades (uma adequada fortificação pacífica), um bairro de gente mais ou menos intelectual, professores universitários, artistas, escritores. Mãe, pai, um filho e duas filhas, um quadro aparentemente normal, representativo de um certo hipster nonchalant californiano, se é que a definição existe. O pai, Mort Pfefferman (Jeffrey Tambor), decide partilhar com a família e o mundo que iniciou uma jornada de mudança de género e de descoberta de si próprio e por inerência descoberta dos outros, especialmente do círculo familiar. A partir desse momento passa a chamar-se Maura Pfefferman, a vestir-se de acordo com o estereótipo feminino, passando tamém a ser tratado por MaPa pelos filhos, (Mãe e Pai ao mesmo tempo, uma só entidade e a anulação do género para os efeitos de qualquer modelo parental clássico).

 

O que vale em Transparent são os seus personagens, este círculo de 5, 6 personagens que são a família Pffeferman. A irmã mais velha, narcísica, ninfomaníaca, egocêntrica, uma personagem de Patricia Highsmith, um Tom Ripley feminino a reboque de um século 21 americano. O irmão, uma criança de 40 anos, e a irmã mais nova, o elo de ligação de toda a temática transgénera na série porque se procura dar uma continuidade intergeracional ao tema – existe um ascendente Pfefferman que teria sido transgénero, e o aspecto físico da personagem de Ali Pfeffermann não é inocente.

Num dos episódios os filhos brincam dizendo qualquer coisa como “Já repararam que a nossa mãe é provavelmente a única Pfefferman que gosta de homens?” 

É uma tragicomédia dos tempos modernos, uma série que faz sentido hoje, mas que se quer intemporal, de escrita subliminar, inteligente, com o tempo suficiente para reflectir sobre os personagens e o desenrolar das suas vidas, uma verdadeira descoberta. Ali Pffeferman arranjar uma namorada que é também uma escritora lésbica antisistema muito mais velha, seria um cliché? Podia ser, mas aqui não. Destaque para a personagem de Judith Light, a matriarca Shelly Pfefferman, de entre todas as personagens, a mais assolada por um sentimento de solidão. O que resta para ela com 60 anos cujo o marido afinal é uma mulher, revolta, abnegação, descoberta, tudo e mais alguma coisa, tudo e aquele corpo meio franzino. Mas a solidão espalha-se pela família como verdadeira doença do século 21, no fundo todos queremos ser felizes, enfrentar os nossos medos, não desiludir esse templo que é a família … é sempre a família. É este um retrato da América que não é a América de Trump, mas também não parece ser a América de Hillary, será mais um microcosmos do estado do mundo ocidental, ou como varremos para a tal “fortaleza” os assuntos que estão longe de serem uma normalidade ao contrário daquilo que os meios de comunicação mainstream nos querem vender.

Um prodigío de escrita, uma banda sonora sublime, do melhor que veio da América nos últimos anos.

Transparent é uma série da Amazon que passa em Portugal no TV Séries.

Carlos Abreu

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