Terça-feira, 19 Março

O regresso a Twin Peaks. Onde estamos?

Se a questão mais proeminente ao longo da “carreira original” da série Twin Peaks (entre 1990 e 1991) – e uma das que mais marcou a história da TV – foi: “Quem Matou Laura Palmer?“, entretanto respondida de forma idiossincrática por David Lynch a meio da segunda temporada, era normal perguntar-nos: “E agora?“. Uma resposta a quente, após entrar em “Twin Peaks 2017” é outra pergunta. “Importa assim tanto saber?”

Ao testemunhar esta sua recente possessão demoníaca, livre de convenções narrativas, percebe-se a sua frustração perante o estado atual formatado da sétima arte. Para todos aqueles que privilegiavam a narrativa à atmosfera no passado, bem, temos pena.

Em Black Lodge, lugar das cortinas vermelhas e de um padrão de chão ziguezagueante e mutável, Laura tinha dito ao Agente Cooper, entretanto preso nessa dimensão extra-terrena, que o voltaria a ver 25 anos depois. A promessa foi cumprida; Lynch, que ainda recentemente disse que ia deixar de fazer cinema, já mentiu: Twin Peaks, tido como terceira temporada, aparenta logo ser cinema.

Um filme de 18 horas, que infelizmente não terá exibição em sala tão breve (se bem que Cannes abriu exceção este ano, e exibiu em tela as primeiras 2 horas). E é, tal como a primeira aparição da sua visão em 1990, diferente de tudo o que vemos atualmente em televisão; com a diferença que “Twin Peaks 1990” se fazia distinguir das novelas; “Twin Peaks 2017” tem como “competição” uma idade de ouro deste meio televisivo, onde foram ainda algumas as tentativas de replicar a sua estrutura policial, o mistério por resolver.

 

Seria difícil, por exemplo, imaginar a conceituada e a ambiciosa Top of the Lake de Jane Campion (outra série em modo cinema, também presente em Cannes na sua segunda incarnação) sem a influência de Twin Peaks. Esta distinção atual, que faz no limite até “Twin Peaks 1” parecer assim não tão diferente que as novelas que na altura subvertia, vem de um lugar muito próprio do próprio autor; ao contrário do que manda a “lei” não escrita, Lynch foi-se tornando cada vez mais idiossincrático, mais fechado no seu mundo. Mais puro, dirão muitos. Com liberdade criativa total para espalhar o caos, concordarão todos.

E assim, outra pergunta posta pelos primeiros episódios, entretanto disponibilizados pela Showtime, é: “Onde estamos?“. Geograficamente, e de uma forma que aparenta não esconder um traço de ironia, o criador vai-nos dizendo “Nova Iorque”, “Buckhorn, South Dakota”. Sim, Twin Peaks já não é só “Twin Peaks” – e a geografia é apenas uma manifestação imediata (física) de uma identidade nova que a série adotou. Falando em referências passadas da sua obra, há, até mais que a série original, ecos óbvios de “Fire Walk With Me”, prequela da série de 1992. E nota-se também a mesma a mão por detrás das suas duas últimas criações, também para cinema: Mulholland Drive, originalmente um piloto cancelado pela estação de televisão ABC (embora também esse pareça agora novelesco comparado com este novo pesadelo) e Inland Empire – ambos pela estrutura de vinhetas cómicas e/ou arrepiantes que nos introduzem personagens sem sabermos se vão ser relevantes ou não.

Há uma sensação de tensão contínua em planos incrivelmente longos, nesse aspecto verdadeiramente anti-televisivos, sobretudo com a TV norte-americana que insiste em pôr anúncios a cada 10 minutos. Há um regresso, como não podia deixar de ser, do fascínio do realizador por objetos misteriosos e pistas aleatórias. E claro, é muito provável, conhecendo este senhor, que muitas das pistas fornecidas logo à cabeça nem sequer sejam efetivamente pistas fiáveis de serem seguidas rumo a uma conclusão racional…

Twin Peaks 2017” não aparenta, pela análise das primeiras horas, ser sobre um destino concreto, mas sim sobre a viagem. E enquanto a viagem for assim tão fascinante, não será preciso muito mais. Bem, uma verdadeira viagem ao passado ao som de Chromatics (a fazerem a vez de Julee Cruise) parece cedência suficiente para já.

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