Domingo, 5 Maio

«Heaven Is for Real» (O Céu existe mesmo) por Nuno Miguel Pereira

Desde sempre que se ouvem relatos, ou se escrevem livros, a descrever experiências de quase-morte, extrassensoriais, em que inevitavelmente se acaba a falar com um homem, com barba de 4/5 dias, a que se chama Jesus, ou Deus, de forma algo aleatória. Adaptar esses livros a filme, já se trata de uma outra coisa. Neste O Céu Existe Mesmo somos confrontados com um filme cristão, conservador, feito para cristãos, conservadores, amantes de Sarah Palin e George W. Bush. Toda a população restante irá interpretar isto como propaganda barata e, pior que isso, mal feita.

A história – baseada em fatos “verídicos” – centra-se em Colton (Connor Corum), um rapaz de 4 anos que após quase ter morrido de apendicite aguda conta ao seu pai, Todd Burpo (Greg Kinnear) – o pastor da igreja local – que encontrou Jesus, montado num cavalo multicolor e viu anjos a cantar. Mais tarde, numa espécie de follow-up, ainda teve tempo para ir dar uma voltinha com parentes mortos de Todd.

Importa aqui referir que o tom jocoso presente na crítica não tem nada que ver com crenças, ou com inclinações ideológicas. Uma crítica deve ser objetiva e pôr de lado todas essas coisas. Assim, objetivamente, o filme começa a falhar precisamente por ser uma representação generalista que mais do que mostrar um lado, impinge várias crenças.

Em primeiro lugar, é mostrado todo um conceito de família perfeita, em que é o menino loiro e puro, que tem as visões. Numa aldeia longínqua, constituída por pessoas de raça branca e onde se coloca um casal hispânico, com direito a umas falas padrão.

Depois, toda a narrativa parece basear-se na via sacra, descrita no Novo Testamento. Desde a revelação, até a caminhada em que se espalha a verdade, momento em que muitas pessoas fazem pouco e desacreditam o que é dito, até à parte em que finalmente é intuído, sem qualquer base racional, como se fosse uma epifania coletiva, que o céu existe e que aquele milagre aconteceu.

Para chegarmos lá, recorre-se a personagens humanizados: desde o pai de família bombeiro, que põe o “We will rock you” a tocar no carro, até ao praguejar em frente à figura de Deus.

Como toque final, existe ainda a tentativa de universalizar o fenómeno das visões que, por serem relatados por crianças, têm forçosamente que corresponder à realidade – isto depois de uma cena ridícula em que uma “psicóloga” diz umas baboseiras científicas, só para não parecer que o filme é tendencioso. O que se seguiu foi outro testemunho, de outra criança de 4 anos, desta vez na Lituânia, que viu o mesmo senhor com barba por fazer, vestido com um lençol amarelo. Se na América e na Lituânia se viu a mesma coisa, então só poderá ser verdade.

Em termos técnicos, pior do que ter uma narrativa a tentar puxar à lágrima de 5 em 5 minutos, é ter uma banda sonora sentimentalista presente em todas, e neste caso não é exagero, as cenas da ação. Em termos visuais, todos os planos – carregados de zoom in e zoom out – se assemelham aos wallpapers do Windows XP, cheios de plantações de milho e verdume.

Em relação aos personagens, só Greg Kinnear e Connor Corum têm papel. De resto, é um desfilar de atores – bons atores, como Thomas Hayden Church – que se limitam a dizer umas falas e a sair de cena. Cenas essas profundamente superficiais, onde até a experiência de quase-morte de Colton é tratada como se fosse uma ida ao supermercado, com trânsito no regresso.

No final, ao pretender colar-se ao livro, caricaturou-o. Independentemente das crenças de cada um, mais que impor pela força será sempre melhor impor a reflexão. No fundo é isso que se trata, refletir sobre crenças religiosas, aceitando-as ou não, mas de uma forma que estimule ao pensamento, não ao conformismo – o que foi no fundo o que se verificou aqui.

O melhor: O discurso final de Todd é relativamente bem conseguido e o mais próximo da neutralidade que se encontra nesta obra.
O pior: O festival de chavões religiosos, tratados como dogmas.


Nuno Miguel Pereira

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