Domingo, 5 Maio

«Corpo Celeste» por João Miranda

Não se trata de um filme cínico ou descrente: o seu final é uma afirmação positiva e poderosa de crença na magia e encantamento do mundo, capaz de tocar crentes e não-crentes. 
 

O encantamento desapareceu da cultura ocidental, reduzido a algo que as crianças têm e que se perde com a idade. Mesmo as antigas estruturas de conhecimento como a igreja, com o seu mistério teológico, perderam a capacidade de o reconhecer. O tom de “Corpo Celeste” é estabelecido nas primeiras cenas: numa procissão religiosa, conhecemos Marta, que chegou da Suíça onde esteve dez anos com a mãe e a irmã, obrigadas a voltar para a sua cidade natal no sul de Itália; Santa, uma mulher solitária que ajuda na igreja e cuja falta de sinceridade é tal que Marta recua, numa antevisão das aulas de preparação para o crisma que esta dá e onde Marta foi inscrita numa tentativa de a integrar na comunidade; e o Padre Mário, cujas prioridades rapidamente se percebem não ser a sua paróquia e as pessoas que a constituem quando, irritado, impaciente e preocupado com a chegada do bispo,  é o seu telefone que interrompe o silêncio que pede a todos para mostrar o respeito a este. Na cena seguinte vemos Marta, a tentar perceber as mudanças no seu corpo adolescente e a tentar normalizá-las com as imagens que vê na televisão, roubando o soutien à sua irmã e tentando simular o decote que vê nas apresentadoras. O Corpo Celeste do título é o de Cristo, mas também o de Marta, que se vê presa entre um corpo em transformação e uma estrutura social desilusiva, onde os rituais e os actos perderam o seu mistério e as pessoas que neles participam o fazem de forma despegada e nunca chegando a ser uma comunidade.

Este é um retrato da religião como é vivida por muitas pessoas, onde o facilitismo e a tentativa de a tornar mais apelativa se traduz em discursos inanes como o de Santa que compara a religião a ter uns óculos de sol que permitem ver a realidade de uma forma diferente ou em músicas como as que cantam os alunos das aulas de crisma onde comparam Jesus a um rádio e manifestam o seu desejo de se sintonizar com ele. É nesta degradação simplificadora que o encantamento se vai escoando e é contra isto que Marta luta, tentado perceber a cerimónia em que vai participar e a instituição a que irá pertencer. 

O primeiro filme de ficção de Alice Rohrwacher, é aqui visível a influência do documentário, género a que se dedicou antes, na forma como filma a ruína e a decadência urbana, as pessoas e as interacções, dando uma profundidade à história contada e adicionando à crítica social contida. Também responsável pelo argumento, Rohrwacher consegue construir, sem muitas frases, uma personagem complexa em Marta, com a ajuda da inacreditável Yle Vianello que acaba por estar presente em quase todas as cenas do filme e que consegue surpreender pela maturidade e expressividade da sua representação.

De certeza que, a ter uma distribuição comercial em Portugal, “Corpo Celeste” irá gerar muita discussão sobre a igreja e religião, mas não fique a ideia que se trata de um filme cínico ou descrente: o seu final é uma afirmação positiva e poderosa de crença na magia e encantamento do mundo, capaz de tocar crentes e não-crentes.

O Melhor: Yle Vianello, a capacidade de mostrar um tema tão complexo de forma clara.
O Pior: o som, não sei se de propósito ou por limitações técnicas.
 
João Miranda
 

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