Sexta-feira, 19 Abril

Agnès Varda: a emancipação em forma de artista

Um cancro na mama acaba de privar o mundo de uma cineasta que amamentou gerações de mulheres, dos anos 1950 até hoje, com o sentimento da afirmação do feminino bem antes de “emancipação” se tornar a palavra da moda: aos 90 anos, a belga Agnès Varda, pilar da Nouvelle Vague, morreu esta madrugada.

Pioneira da modernização política e narrativa da produção audiovisual, a realizadora de Felicidade (Prémio Especial do Júri no Festival de Berlim de 1965) e Sem Eira Nem Beira (Leão de Ouro em Veneza, em 1985), cujo nome real era Arlette, tinha no seu currículo um Oscar honorário, uma Palma de Ouro de honra ao mérito e o troféu Berlinale Camera.


Cléo das 5 as 7
 

Cléo das 5 às 7 (1962) é a ficção mais famosa da sua prolífica obra (trabalhou em cerca 54 produções), construída a partir de 1954, quando finalizou La Point-Courte. Hoje, afirma-se que este é o filme-génese do fluxo de modernização da arte audiovisual na França, que gerou a “Nova Vaga” francófana nos ecrãs, entre 1958 e 1970. Foi uma época revolucionária, na qual ela foi casada com o mestre europeu dos musicais Jacques Demy (1931-1990), realizador de Os Chapéus de Chuva de Cherburgo (1964). Viveu com ele de 1962 até a morte do realizador, com quem teve um filho, o ator Mathieu Demy, hoje com 46 anos. Antes dele, numa relação com o ator Antoine Bourseiller (1930-2013), teve uma filha, Rosalie Varda, uma aclamada figurinista, que, nos últimos anos, trabalhou como produtora de Agnès.

Subjetividade e objetividade andam juntas no cinema: quanto mais livre para criar e soltar seu olhar lúdico, mais objetivo seu cinema será“, disse a cineasta em fevereiro, na sua passagem pelo Festival de Berlim, onde lançou seu último filme, Varda par Agnès, um misto de autorretrato e diário de viagem.

 Já lançado em França, o projeto é resultado das viagens que a cineasta fez pelo mundo durante o lançamento de Olhares Lugares, produção feita em parceria com o fotógrafo JR, laureada com o troféu L’Oeil d’Or, a Palma de Ouro dos documentários, em Cannes em 2017. Por esse exercício de reflexão da imagem, ela chegou a ser nomeada ao Oscar, em 2018. Reestruturado para ser exibido na TV, como série, Varda par Agnès acompanha uma jornada dela de Paris até Los Angeles e, de lá, pra China, passando em revista 60 anos de imagens produzidas a partir de um instinto autoral.

Resistir ainda é uma forma poética de se expressar. Em 1968, era o que a gente mais fazia, entre filmagens e conversas sobre grande diretores. Cinema é pra ser vivido e essa vivência envolve levar o mundo para os sets, para os diálogos, para as conversas ao fim dos filmes“, disse Agnès ao C7nema, numa recente conversa em Espanha, aquando do lançamento de Olhares Lugares. “A função social de um artista é investigar a brutalidade e a beleza, para instigar a emoção e o pensamento. Intervir na sociedade pela expressão poética é parte do processo de criação e faz do cinema uma ferramenta de denúncia e de transcendência“.

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Em vários questionários respeitados sobre os melhores filmes de todos os tempos, encontra-se o nome de Agnès, quase sempre representado por Cléo das 5 às 7 (1962), lançado no ápice da Nouvelle Vague (o movimento que modernizou a maneira de se filmar na França, a partir de um engajamento com os pleitos revolucionários do período, revelando génios como Truffaut, Godard, Chabrol). Este manifesto da força feminina, indicado à Palma de Ouro, entrou na lista dos cem maiores longas metragens de língua não inglesa apurados pela BBC de Londres com mais de 200 críticos do planisfério cinematográfico.

O recorrente (e merecido) carinho dos críticos com Agnès é uma gratidão à sua contribuição para novas (e livres) formas de representação da mulher no cinema. “Venho de uma época em que eu era a única cineasta em atividade num ciclo cheio de homens. Cá entre nós, acho que o número atual de mulheres cineastas ainda é muito aquém do que a arte e o mundo. Os meus filmes são femininos e aportam à realidade a percepção de que as mudanças são graduais e que dependem da integração de todos“, disse Agnès em um recente colóquio em San Sebastián. “O mais bonito de se fazer um documentário é buscar o que há de poético na vida, abrindo os olhos diante dos em enigmas que a realidade nos apresenta cotidianamente“.

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