Sexta-feira, 19 Abril

Morreu Med Hondo, pioneiro do cinema africano e crítico feroz ao colonialismo

O realizador francês de origem mauritana Med Hondo morreu no passado sábado aos 82 anos em Paris.

Nascido em 1936 como Abib Mohamed Medoun Hondo, este pioneiro do cinema africano emigrou para a França, em Marselha, no final dos anos 50, trabalhando como estivador e cozinheiro antes de descobrir as artes: “Na década de 1950, trabalhei em Marselha, na indústria da restauração, e muitas vezes ficava indignado com o comportamento dos meus superiores brancos e de alguns colegas. Fui submetido ao racismo, como a escravidão, cujo estigma tive desde a minha infância na Mauritânia. Ciente que a minha palavra seria fraca se eu quisesse depor, embarquei numa aprendizagem de teatro e depois cinema“, explicou em entrevista no ano passado.

Assim, começou no Teatro, passou para a TV e ainda nos anos 60′ teve alguns trabalhos de figuração em filmes como Masculino Feminino (1966), de Jean-Luc Godard, Entre o Amor e a Morte (1969), de John Huston, e 1 homme de trop (1967), de Costa-Gravas.

Depois de assinar duas curtas metragens, Hondo deu nas vistas com Soleil Ô em 1969, filme que venceria o Festival de Locarno e que o Festival de Cannes – que o exibiu na Semana da Crítica – considerou “um ataque pungente contra o colonialismo“. “Financiei o ‘Soleil 0’ com um ano e meio de salários de dobrar vozes negras do cinema americano para o francês. Ironicamente, não posso dobrar papéis brancos, mas os brancos podem dobrar as vozes negras“, disse em entrevista em 1982.

Já em nova entrevista no ano passado, falou do “grito de revolta” que foi esse filme: “Cerca de 23 anos após a Segunda Guerra Mundial e menos de 10 anos após a independência africana, já havia algo de podre no modo de lidar com os imigrantes. O fôlego do maio de 68 deu-me asas para fazer esse filme“.

Crítico do sistema financeiro e do colonialismo, Hondo não separava a arte da economia: “Para todos os cineastas africanos, as filmagens estão ligadas ao controle sobre a economia, a política e as matérias-primas. Se o Senegal planta amendoim, ou tem cobre, o preço de venda é decidido em Paris ou Washington. A indústria cinematográfica, o amendoim, o cobre e o ferro são a mesma coisa. As firmas multinacionais na Europa e nos Estados Unidos controlam a política mundial. Não é por acaso que alguns estados africanos exigem um sistema monetário novo e internacional. Os filmes africanos são subutilizados e subdesenvolvidos. Temos boas ideias, mas não temos como financiar e distribuir filmes. Não há indústria cinematográfica africana que nos permita produzir a nossa própria imagem. É semelhante ao subdesenvolvimento nos EUA que os nativos americanos e os negros americanos enfrentam, que não têm dinheiro para produzir e distribuir filmes nem possuem seus próprios cinemas“.

Soleil 0 voltou a ser exibido em Cannes na sua secção reservada aos clássicos há dois anos, tendo beneficiado do programa de restauração através da World Film Foundation de Martin Scorsese, em parceria com a Federação Pan-Africana de Cineastas e a Unesco.

Porém, Hondo sempre foi bastante crítico do sistema de festivais onde Cannes também se inseria: “Podemos colocá-lo nestes termos: o inimigo não nos permitirá ser independentes se nós mesmos não nos tornarmos autónomos. Nós ainda temos que ir a todos os festivais – para Moscovo, Hollywood, Chicago – mas apenas sob certas condições. O mundo ocidental criou esses festivais como mercados. Os cineastas não devem ter ‘ilusões sobre o folclore’. Eles convidam Med Hondo, Souleyman Cissé, um marroquino, um negro americano, só para provar que têm a mente aberta.

Depois de ‘Soleil’,  Hondo filmou Les Bicots-nègres, vos voisins (1973), vencedor do Festival de Cartago; o musical político West Indies ou les nègres marrons de la liberté (1979)Sarraounia (1986)Lumière noire (1994); e Watani, un monde sans mal (1998), o qual provocou polémica e gerou, segundo o cineasta, “obstruções” concretas à sua divulgação em França: “A então ministra da Cultura, Catherine Trautmann, endossou uma decisão de censura disfarçada pela Comissão de Classificação das Obras Cinematográficas sobre violência e suicídio em massa. O filme era apenas um olhar sobre o racismo na França. Não houve um tiro, nem uma gota de sangue, muito menos suicídio“.

Já anteriormente o realizador teve de lidar com problemas semelhantes, como no seu Sarraounia, que estava para ser filmado na Nigéria mas que viu ser negada essa pretensão, tendo a produção passado para o Burquina Faso: “A França pressionou a Nigéria. A heroína do filme, inspirada no romance de Abdoulaye Mamani, é anticolonialista. Isso colocou em questão a hegemonia da França no seu território“.

A passagem da produção para o Burquina muito se deveu a Thomas Sankara, um militar, revolucionário marxista, pan-africanista e líder político do país, que na época do filme era secretário de Estado: “‘Aqui você está em casa. Você pode filmar sempre que quiser. Só não tenho é dinheiro para te dar’. Foi assim que o filme foi filmado em Burquina“, explicou.

Com Lumière Noire, as pressões e censuras camufladas do estado francês continuaram, tendo o cineasta afirmado que foi banido de filmar nos aeroportos franceses Charles-de-Gaulle e Orly e nos hotéis em redor. “No final, vários canais de TV e cinemas recusaram exibir o filme“, disse. O seu último projeto na realização foi Fatima, l’Algérienne de Dakar (2004).

Para além destes trabalhos, Hondo fez ainda dois documentários sobre o movimento de independência no Saara Ocidental e teve uma longa carreira em França a dobrar filmes, sendo conhecido por ser a voz francesa de atores afro-americanos como Eddie Murphy, Morgan Freeman, e Richard Pryor.

Considerado por muitos como uma voz contra a opressão, Hondo assumia ser até ao ano passado uma parte integrante da minoria oprimida e imigrante: “Eu pertenço a esta casta mauritana, os Haratines, que hoje são pomposamente chamados de “escravos libertos”. Os Haratines sempre experenciaram o assédio moral da escravidão. E isso continua. (…) Na Mauritânia, como em outras partes do norte de África, o negro está em toda parte vítima de desprezo apenas por causa da sua cor. Este é um grande paradoxo, porque foram os seus ancestrais, os faraós, que inventaram a civilização. “

Sobre o projetos que não conseguiu executar,  Hondo falou no ano passado num filme baseado no livro do poeta e romancista mauritano Ahmedou Ould Abdelkader: “El Asmamutakhayira. O livro fala da realidade da Mauritânia, através de um movimento revolucionário de jovens que querem emancipar o seu país.“.

Outro projeto que nunca viu a luz do dia foi uma cinebiografia em torno de Toussaint Louverture, líder da Revolução Haitiana, que Hondo chegou a preparar com o ator Danny Glover.  Porém, e segundo o falecido, Glover nunca mais falou com ele após um primeiro contacto nos anos 90, tendo anos mais tarde avançado com a ideia de produção do filme sem o envolvimento de Hondo.

Consta que o norte-americano chegou a receber 18 milhões de dólares de financiamento por parte do então governo da Venezuela, liderado por Hugo Chavez, mas ainda assim o projeto nunca se concretizou.

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