Sexta-feira, 29 Março

Crónica: a língua oficial do Festival de Roterdão é o português

Já com o festival a todo o gás, torna-se impossível não constatar que a língua oficial desta edição do festival de Roterdão é a portuguesa, dada a quantidade de obras e cineastas portugueses e brasileiros dispersados pelas 4 secções do evento.

A lista dos mais badalados até agora é encabeçada por uma mistura destes dois universos, e com grande perícia há que dizer. Refiro-me ao inquietante Tragam-me a cabeça de Carmen M. (The Head of Carmem M.), correalizado pelo brasileiro Felipe Bragança (que no ano passado foi muito falado em Berlim graças ao seu Não Devore Meu Coração) e Catarina Wallenstein, que se estreia agora por detrás das câmaras numa obra corajosa que confronta este tempo de crise intensa repensando o mito de Carmen Miranda. O impacto da eleição de Bolsonaro no discurso coletivo brasileiro, em particular naquela conversa perpétua do que significa ser brasileiro, foi o grande mote para este filme que se recusa caricaturar a famosa minhota que conquistou Hollywood nos anos 30. Genuíno e sincero, The Head of Carmen M. promete reacender um chama potente no Brasil já que desafia os brasileiros a pensarem sobre si mesmos num período negro da sua história em que o silêncio substituiu a cor e o som.


Tragam-me a Cabeça de Carmen M.

Falando em atrevimento, Ico Costa, que há já muito que vem ameaçando tornar-se numa das figuras de referência do nosso novo cinema, trouxe a Roterdão a sua primeira longa-metragem, que já ganhou o rótulo de um dos trabalhos mais complexos e de difícil digestão nesta edição do evento holandês. Alva apresenta-nos a Henrique (Henrique Bonacho), um agricultor que vive em quase total isolamento desde que as suas filhas foram levadas pela segurança social. Após embarcar num ato de vingança extremamente violento e na consequente evasão para o mato somos forçados a acompanhar o protagonista numa incessante procura por comida e abrigo, reflectindo o espírito volátil e arrependido de um homem silencioso e discreto. Com tão poucos diálogos e contexto torna-se difícil simpatizar com este anti-herói, mas a extraordinária performance de Henrique Bonacho e a solidariedade de Ico Costa perante o seu protagonista escondem muitos tesouros que transformam esta experiência num dos filmes mais essenciais do cinema português contemporâneo. Consenso nunca conquistará, mas Alva é um trabalho obrigatório de uma das vozes que se assume agora corajosamente como uma das mais originais do nosso cinema.


Alva

Na competição principal encontra-se também outra pérola que arrisca-se a sair de Roterdão com um premio. No Coração do Mundo de Gabriel Martins e Maurílio Martins leva-nos até Contagem, um subúrbio de Belo Horizonte onde a vida raramente sorri para um grupo de personagens quase derrotadas pela vida. É uma história brasileira já mais que batida e sim, como seria de esperar, o crime apresenta-se aqui também como a melhor e mais sedutora alternativa. Até aqui nada de novo, mas No Coração do Mundo não se limita ao destino costumeiro, alimentando-se de uma dicotomia refrescante entre as personagens femininas e masculinas que não é de menosprezar. Neste enredo os homens resignam-se à sua condição, aceitando todas as suas limitações e lamentações, preferindo ceder a uma espera interminável pelo momento em que a sua falta de alternativas lhes traga um ponto final. Em contrapartida as mulheres parecem carregar o peso do se mundo nos ombros, sendo forçadas a assumir inequivocamente o papel de liderança nessa luta injusta e predestinada a fracasso.


No Coração do Mundo

Por último, neste jogo em que o português lidera de forma bem ruidosa, falta-nos apenas uma menção para “A Noite Amarela” do nordestino Ramon Porto Mota, cujo seu “Slasher Espiritual” pega num cenário mais que comum ao género do terror (um grupo de jovens viaja para uma localidade isolada e…mais não será necessário descrever) levando-o no entanto por caminhos bem mais interessantes do que o espectável, misturando a experiencia teen com um espírito punk mergulhados num universo que deve muito a David Lynch (ver critica).

Resta apenas dizer que a estrela maior desta constelação em lingua portuguesa, Edgar Pêra, não foi esquecida, mas será propriamente esmiuçada na próxima crónica de Roterdão.

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