Quarta-feira, 24 Abril

«Setenta» por Hugo Gomes

Existe muito por onde investigar sobre a Ditadura Militar brasileira, muitas histórias a serem reveladas e pormenores que não podem ser esquecidos. Mas nem sempre as intenções levam a melhor sobre uma panóplia de memórias e lutas desvanecidas. Há que saber investir na narração, muito mais quando falamos no cinema documental.

Setenta soaria no papel como uma proposta cativante e corajosa, uma reflexão solene dos acontecimentos decorridos no Brasil, mas também no Chile (passando pelo seu negro 11 de setembro), na década de 70 e a resistência vista como fantasmas peregrinos torturados numa sociedade que os renuncia a olhos vistos. Mas o que resultou nesta produção de Cavi Borges, apoiada pela Globo, foi mera linguagem televisiva sem um pingo de cinema enquanto revitalizador de fórmulas. Emília Silveira, também ela sobrevivente do negro período que o filme aborda, tem aqui uma obra pessoal, isso ninguém nega, mas Setenta é uma consequência da sua experiência como repórter da Globo, sem conhecimento algum de como se expressar em géneros cinematográficos.

Nesse sentido falta sobretudo dinamismo da temática e sofisticação do seu registo narrativo, algo que não fosse somente uma intercalação de testemunhos e imagens de arquivo. Setenta é acanhado na sua garra e nunca em momento algum consegue fazer sobressair as histórias que tão bem encontrou. Ao invés, a sensação de desperdício é descomunal.

É pena visto que o material reunido daria mais do que um filme, provavelmente mais de 18 filmes, cada um deles traduzindo a trama de um sobrevivente que tão bem merecia um reduto só seu.

Segundo um desses “heróis”, viver no Brasil daquela época era exatamente o mesmo que “fazer um churrasco num paiol de munição com cerveja e cachaça“. Infelizmente, tal nunca é verdadeiramente transmitido aqui. Eis um retrato que merecia mais … muito mais!

O melhor – as histórias reunidas
O pior – o formato meramente televisivo e sem elo de criação


Hugo Gomes

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