Sexta-feira, 19 Abril

«Rabo de Peixe» por Paulo Portugal

Em 1998, Joaquim Pinto e Nuno Leonel decidiram passar o fim do ano nos Açores, na localidade de Rabo de Peixe conhecida por ser o repositório da maior coleção de peças de pesca artesanal do arquipélago. Fascinados pelo modo de vida daquela vila piscatória, os realizadores decidem regressar no ano seguinte para captar aquele ambiente num documentário para a televisao do estado. No entanto, houve desentendimentos com o modo como a equipa abordou o tema e foram mesmo convidados a excluir “cenas que davam uma má imagem dos pescadores e da comunidade piscatoria”, acabando por limitar-se a uma única exibição na RTP. Catorze anos mais tarde, já depois da pesca artesanal ter sido substituida pelo modo industrial, uma nova montagem e locução de Rabo de Peixe é selecionada para a secção Fórum do festival de Berlim, onde emerge com toda a sua frescura oferecendo-nos um belíssimo retrato daquela comunidade mais conhecida pelos problemas sociais, como refere a voz de Joaquim Pinto logo no início.

Um dos motivos para a decisão de fazer um documentário sobre a vila foi a amizade que estabeleceram com Pedro, um pescador com um irmão gémeo idêntico que passa a ser também uma espécie de referência sobre a jornada deste modo de vida artesanal que dificilmente pode concorrer com a pesca industrial. Partimos então com uma equipa mínima de pescadores para a pesca à linha do espadarte e cavala, percebemos como é possível a pesca a bordo de uma casca de noz no meio da imensidão, ao mesmo tempo que a câmara de Joaquim Ponto nos embrenha na atmosfera da ilha, nos seus hábitos, costumes, mas também das várias histórias e lendas do mar que nos dão também conta do profundo sentido de liberdade. Nesse sentido, Rabo de Peixe partilha uma estranha semelhança com um outro documentário, El Botón de Nácar, do chileno Patricio Guzmán, inspirado a partir de uma rocha milenar contendo no seu interior uma pinga de água para as vicissitudes geográficas deste imenso país com uma costa de mais de 4 mil quilómetros, para históricas se envolver com o seu passado, a sua geografia humana do povo indígena, bem como o destino político de muitos dissidentes políticos.

Rabo de Peixe também é muito mais do que um mero ‘director’s cut‘. Não só por ser virtualmente desconhecido de todos aqueles que não assistiram à passagem única na televisão, mas sobretudo por passar a constituir com o genial E Agora? Lembra-me um díptico onde emerge o fulgor documental de Pinto e Leonel e, sobretudo, um profundo registo pessoal. Nesse sentido, e por Rabo de Peixe assumir também essa vertente pessoal da vida dos próprios realizadores, acaba por assumir-se como uma espécie de prequela de E Agora?, pois dá-nos conta do momento em que Joaquim Pinto e Nuno Leonel decidem passar a viver em Rabo de Peixe, depois já de receberem o cachorro Rufus, que veremos já velhote no filme mais recente; isto, claro, numa altura em que a doença não fazia parte das suas preocupações. Sendo que em ambos perpassa o mesmo fio de profunda intencionalidade cinematográfica e de ligação da realidade com as imagens, com as palavras, com a vida. Genial.

O melhor: A limpidez solar das imagens e da comunidade que vive ligada ao que a água lhe dá e a forma como afeta os realizadores.
O pior: O facto de ter ficado tanto tempo escondido do público.


Paulo Portugal

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