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«Citizenfour» por Jorge Pereira

Os primeiros minutos de Citizenfour demonstram imediatamente que muito pouca coisa mudou com a chegada de Obama ao poder nos EUA e que a América, pós 11/09/2001, continua paranóica e ferida.

Laura Poitras, a cineasta por trás deste documentário absolutamente obrigatório, é uma das vítimas da segurança nacional norte americana, tendo ficado numa espécie de watchlist logo após a execução do documentário My Country, My Country (2006), sobre a ocupação do Iraque. O seu trabalho posterior que tinha por base a prisão de Guantanamo, The Oath (2010), ajudou mais ao seu estatuto de pessoa a seguir pelas autoridades, sendo frequentemente travada na entrada do país e pressionada a partilhar com as autoridades as informações ou material que possa ter consigo.

A introdução feita pela cineasta ao seu currículo, no início deste documentário, é fundamental para entendermos porque razão Edward Snowden a escolheu para lhe entregar – juntamente com outros dois jornalistas – as cópias dos documentos referentes aos programas de vigilância global dos Estados Unidos e de outros países mundiais, como o Reino Unido.

A partir do momento em que Snowden entra em cena é difícil ao espectador não pensar que não está a ver um filme de ficção. Repare-se que Citizenfour acompanha todo o processo como se desenrolou os secretivos contactos e encontros entre o ex-colaborador da NSA, a cineasta e os jornalistas, Glenn Greenwald e Ewen MacAskill, tudo num quarto de hotel de Hong Kong, com momentos de tensão e paranóia (a cena do alarme no Hotel, os telefonemas sem razão), como se estivéssemos a ver um thriller da linhagem John le Carré.

Mensagens encriptadas, códigos secretos, medo de falar «alto» e a fuga ao reconhecimento visual na colocação de palavras passe, são apenas alguns dos pontos em que questionamos ao que o mundo chegou, e foi isso mesmo que incomodou Snowden, que deu por si a trabalhar para alguém que cada vez mais se eleva em termos de poder: «The elected and the electorate have become the ruler and the ruled», diz ele (mais ou menos nestes termos) como motivação para se assumir como delator, frisando que aquilo que está a contar «não é ficção científica», mas está realmente a acontecer agora, neste instante.

Porém, e ao contrário de Julian Assange, que tem aqui uma breve aparição (quando chegamos à parte da ajuda da WikiLeaks para que Snowden escapasse de Hong Kong para Moscovo), Snowden não mostra sinais de querer ser o centro de toda a história, até porque para ele, o grande problema dos Media hoje em dia é que estes «focam-se mais nas personalidades que nas histórias». Ao invés, o jovem nascido na Carolina do Norte mas que viveu grande parte da vida no Maryland, surge aqui de forma tímida, nervosa e contida, não «sabendo bem como é que estas coisas funcionam» e não apresentando ele mesmo a informação às massas (como a WikiLeaks fez). Em vez disso, optou por cede-la a terceiros (jornalistas), que certamente saberiam a melhor forma de a divulgar (segundo ele, sem nunca colocar em perigo qualquer pessoa em missões secretas).

Paralelamente a todas estas situações, conhecemos também um pouco mais de Snowden, um ser humano sob uma enorme pressão que parte para Hong Kong sem avisar ninguém, nem mesmo a namorada ou a família, numa postura de quanto menos souberem, melhor.

A câmara de Poitras capta alguns momentos que são puro ouro, pois se o que interessa aqui é a história e não Snowden, também é verdade que não estamos a falar de uma máquina, mas um homem que tem consciência que as coisas nunca mais serão como dantes.

Por estas e muito outras razões, este é documentário absolutamente fundamental, mais pelo conteúdo do que pela sua forma ou engenho com que é filmado.

Doloroso é mesmo saber que pouca ou nenhuma coisa vai mudar, pois afinal de contas cedemos cada vez mais as nossas informações pessoais a empresas e serviços (Serviços de Email, Aplicações de telemóveis e tablets, Redes Sociais), e já com a consciência que tudo isso será visto por alguém, como se de uma inevitabilidade se tratasse. Ao que chegámos!

O Melhor: Os momentos captados no quarto de hotel em Hong Kong são históricos

O Pior: No filme aparecem várias peças televisivas sobre o caso na CNN e NBC. Teria sido interessante ver algumas reportagens feitas sobre o caso por orgãos mais conservadores, como a Fox News, até para entendermos quem está por trás desta cultura do medo que sobrepõe cegamente a segurança nacional acima da liberdade de expressão


Jorge Pereira
(Crítica originalmente escrita em novembro de 2014)