Quinta-feira, 28 Março

«German Concentration Camps Factual Survey» por João Miranda

Há uma linha ténue entre os conceitos de documentário e de documento. Pode dizer-se que essa distinção se baseia na análise (ou metainformação) que é aplicada sobre os temas, acabando por criar mais do que apenas um documento. O que quer dizer que todos os filmes são documentos (da época em que foram feitos, dos seus contextos sócio-políticos, etc.), mas nem todos os filmes são documentários (ao contrário do que disseram Jean-Luc Godard ou Jacques Rivette). Em German Concentration Camps Factual Survey torna-se óbvia essa diferença pelo valor de documento que atingiu, quase tão importante como o assunto sobre qual se foca como documentário.

Num momento em que a Europa cai novamente para valores mais autoritários e conservadores (veja-se o crescimento dos movimentos de extrema-direita na França, Grécia, Hungria, Alemanha, Áustria, etc.), por vezes, e apesar de ser proibido por lei em alguns desses países, há quem pretenda negar que o Holocausto aconteceu, muitas vezes de má-fé, mas apoiados na ignorância que o tempo traz (mesmo com Hollywood continuamente a representar o Mal Absoluto com a simbologia Nazi). “German Concentration Camps Factual Survey” é construído usando as filmagens que os soldados, ingleses, americanos e russos, que foram libertar os diversos campos fizeram à sua chegada (ou alguns dias depois) e nele há, como o próprio título indica, um esforço por documentar tudo o que foi feito e as condições de todos os campos. Não tendo sido acabado em 1945, o filme foi concluído este ano, usando o script que estava já escrito (não havendo qualquer esforço para corrigir erros ou omissões) pelo Imperial War Museum.

O valor de documento do filme vai-se tornando claro pela narrativa e pelo tom das imagens. É assumida uma posição moral superior, que se torna mais óbvia no discurso feito em Bergen-Belsen, onde se vê a incompreensão das tropas britânicas perante tudo o que viam e as acções (ou falta delas) dos alemães. Há que lembrar-nos que as experiências de Milgram foram só feitas em 1961, no mesmo ano em que Hannah Arendt seguia o julgamento de Adolph Eichmann, e da influência que ambos tiveram na nossa explicação do fenómeno nazi. Há também algo quase brutal na forma como a câmera grava tudo, independente de conceitos de dignidade. Veja-se a cena voyeurista do momento em que são instalados chuveiros de água quente e as cortinas que afastavam os olhares (e a câmera) são derrubadas e se focam nas mulheres nuas ou a cena em que prisioneiros em estado degradado de saúde são levados a despirem-se e desfilarem perante a câmera. A Declaração Universal dos Direitos Humanos será só assinada três anos mais tarde, em 1948, e não havia ainda a experiência que temos dos media (se é que sabemos alguma coisa).

Apesar desse valor de documento datar o documentário, as imagens não perdem a sua força. Se Claude Lanzmann, no seu monumental Shoah, se recusou sempre a usar imagens de arquivo porque achou que não documentavam o processo de aniquilação e que acabam por ser periféricas à memória e ao acontecimento, as imagens de German Concentration Camps Factual Survey mostram-nos que, apesar da overdose imagética em que vivemos e do contacto que a maioria de nós já teve com representações do Holocausto, nunca perderam a força e a escala do que se passou. A violência dos atos, apesar de não capturada pelas imagens, vê-se nos resultados, na morte e na destruição causadas.

O Melhor: A força das imagens, o valor do documento, o trabalho do Imperial War Museum.
O Pior: É difícil apontar algo que não seja fruto do tempo que passou.


João Miranda

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