Sexta-feira, 29 Março

«Medium Earth» por João Miranda

Há uma inconsequência, tipicamente humana, que nos leva a crer que a terra sobre a qual caminhamos é sólida. Essa ideia só é posta em causa em momentos de catástrofe (um mero abalo não costuma ser suficiente), quando as estruturas humanas que conhecemos e às quais não reconhecemos fragilidade ou mesmo transitoriedade, colapsam. Se lidamos com tudo o que construímos como se fosse eterno (apesar de estarmos sempre a ser confrontados com a sua decadência), mesmo quando conseguimos reconhecer a sua impermanência, a ideia de que a terra em que assenta é sólida não pode ser continuamente questionada e a memória dessas catástrofes cai no esquecimento do quotidiano da irreflexão. O que cremos ser sólido e contínuo, é na realidade fragmentado e flutuante, sempre a deslizar, criando fricções, atritos, sobreposições, quebras e falhas. A qualquer momento um acumular de forças num ponto de resistência pode soltar-se numa onda de violência que torna a terra num oceano.

Em “Medium Earth“, os The Otolith Group conseguem mais uma vez levar-nos a refletir sobre esses “pontos cegos” da nossa vivência e pôr em causa a realidade à nossa volta. Se, em 2012, se tinham dedicado à radiação nuclear em The Radiant (ler crítica), agora dedicam-se à ilusão da solidez da crosta da terra. Usando uma montagem simples de sucessão/adição, o filme parte de uma qualquer garagem, onde a geometria parece traduzir-se em segurança, e escapa, pelas falhas que descobre na sua estrutura, para o deserto e para as mesmas falhas descobertas em rochas e no solo, para se fixar na sobreposição da engenharia humana, uma auto-estrada, com a violência dessas forças subterrâneas, estratos rochosos que assumem a forma de ondas. Só então surge o discurso poético que nos procura de uma forma emocional, rejeitando o racional e o jargão que caracterizam os documentários de cariz mais técnico.

No final, Medium Earth não pretende esclarecer-nos sobre os riscos ou a probabilidade de um acidente sismológico ou sequer sobre as suas origens, procura, sim, levar-nos a reflectir sobre as realidades que vamos construindo (ou ignorando) para conseguirmos viver o dia-a-dia. Mais do que ensinar-nos, o filme altera a forma como vivemos e interagimos com o espaço em que nos encontramos.

O Melhor: O cinema como motor de reflexão entre nós e o espaço que habitamos.
O Pior: A ansiedade que pode causar.


João Miranda

Notícias