Quinta-feira, 18 Abril

«The Rover» por Fernando Vasquez

São raras as ocasiões em que um critico se vê obrigado a implorar ao seu leitor que ignore por completo a performance do protagonista de maneira a justificar o mérito de um filme. Confesso que em todos estes anos tal nunca tinha acontecido, mas acreditem, e por uma boa causa. Mas já lá vamos.

David Michôd tornou-se rapidamente numa figura de referencia do cinema contemporâneo quando em 2010 a sua primeira longa-metragem, Reino Animal, aniquilou toda a competição em Sundance e festivais seguintes, aglomerando uns impressionantes 36 prémios por esse planeta fora. Foi preciso esperar quatro anos para descobrir se Michôd seria capaz de se superar. Agora que The Rover estreou fora de competição em Cannes, Sidney, e agora também em Karlovy Vary, as duvidas podem não ter sido completamente esclarecidas, no entanto o entusiasmo com o realizador não para de crescer.

O filme tem lugar num futuro não muito distante, 10 anos após uma catástrofe desconhecida, simplesmente intitulada de “Colapso”. Michod não nos oferece grande enquadramento, limitando-se apenas a deixar claro que a violência extrema domina o dia-a-dia dos esporádicos sobreviventes que se vão aventurando pelas intermináveis estradas do deserto australiano. Sim, o mais perspicaz dirá: “alto ai, eu já vi este filme!” Os paralelos com Mad Max são inevitáveis. Pior ainda quando o filme começa de imediato com uma perseguição automóvel como já não víamos desde 1979.

Felizmente as semelhanças terminam ai. Michôd não está interessado em reproduzir o universo anárquico do clássico de George Miller. A visão do cineasta australiano é bem mais áspera e complexa do que isso, transportando-nos para uma realidade onde as únicas opções são matar ou morrer. E e exatamente isso que a personagem Eric (Guy Pearce) faz, vezes sem conta, com a frieza digna de Javier Bardem em Este pais não e para velhos. Quando um grupo de criminosos roubam o seu carro, este embarca numa perseguição impiedosa que o obrigara a ser implacável ao mesmo tempo que redescobre alguns vestígios da humanidade que julgava perdida.

O argumento de The rover, uns furos muito abaixo de Reino animal, seguramente nunca levará o filme a grandes pedestais. O desenvolvimento das personagens é limitado e os diálogos são meramente casuais e raros. Em muitos casos esta seria uma falha imperdoável, mas o valor The rover vai muito além da narrativa.

Falemos então de Robert Pattinson (sim, o tal protagonista que mais valia ignorar por completo). Para alguns bastará dizer que no filme o jovem britânico nem uma barba consegue envergar convincentemente. Outros, os mais exigentes, precisarão de ficar a saber que Pattinson mostra-se totalmente incapaz de perceber que o equilíbrio é um fator essencial em qualquer performance dramática, mesmo num filme pós-apocalítico. Do sotaque à postura, já para não mencionar os tiques nervosos com que polui uma personagem que poderia ser muito mais, Pattinson escorrega sempre no exagero, tornando o mais banal movimento numa mera farsa.

Mas porque e que é assim tão importante ignorar a sua presença? Porque do outro lado, como compensação pelo martírio, seguramente fruto de uma mera decisão de marketing, estão duas figuras de valor e grandiosidade inquestionáveis, que fazem de The rover um filme digno de atenção: um ator como Guy Pearce e um cineasta como David Michôd.

O primeiro, Pearce precisa de pouco mais do que olhares profundos e pausas acertadas para demonstrar o vazio emocional que assombra a personagem por ele representada. Feroz e intocável, o ator nunca perde a noção do objetivo do papel, mesmo quando e levado a extremos emocionais. A sua presença é esmagadora, ponderada e imaculada.

O caso de Michôd e ainda mais impressionante. Na sua primeira longa-metragem mostrou que se notabiliza da multidão pelos ambientes íntimos e ameaçadores que cria, sem nunca recorrer a uma ação declarada e desproporcionada. Desta feita a abordagem a violência, que é tudo menos tímida, poderá parecer demasiadamente crua, fria e real para muitos espetadores. Mas seguramente existirão outros que encontraram nessa faceta uma vontade de não romantizar a barbárie que predomina ao longo do filme: Michôd quer apresentar uma experiência real, concreta e palpável, e ao fazê-lo mostra-nos algo raramente visto.

Mais virtuoso ainda a nível técnico, o filme assume contornos impressionantes graças a uma banda sonora absolutamente perspicaz e inesquecível de Antony Partos, que também já tinha dado nas vistas lado a lado de Michod em Reino animal, e uma fotografia que explora toda a imensidão paisagística da Austrália.

The rover pode não ser a obra prima que muitos esperavam de Michôd depois de todo o sucesso ate agora alcançado. Tem demasiados problemas e falhas para atingir tais metas. Reserva no entanto uma rispidez e rudeza invulgares capazes de apelar muito aos fãs do género, para além de todos os que procuram um pouco mais do que acção e violência como mero entretenimento e fantasia.


Fernando Vasquez

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