Terça-feira, 23 Abril

«Je m’appelle Hmmm» por João Miranda

Esta crítica contem elementos determinantes da história (Spoilers) e só deve ser lida por quem viu o filme

Há temas que são complicados de pegar quando se conta uma história. Um deles é, sem dúvida, o abuso de menores. Mais do que uma questão de bom gosto ou do que se mostra e o que se esconde, o que está em jogo é a forma como se constroem as personagens e como se mostra o trauma causado, sem nunca cair em tons de vitimização (retiram poder a quem sofreu) ou de desculpa (retiram a culpa a quem o fez). Je m’appelle Hmmm… pega num desses temas e não se pode dizer que se tenha saído bem.

Céline é uma miúda de 11 anos que é abusada pelo pai, situação que pôde acontecer porque o pai está desempregado e a mãe trabalha até tarde. “Pôde acontecer” não quer dizer que todos os pais desempregados com as mulheres a trabalharem até tarde passem por esta situação, há aqui algo mais, mas o pai de Céline é apresentado como uma alma torturada, incapaz de lidar com o que está a acontecer e preso numa situação da qual não sabe sair. Até aí podemos aceitar, não precisamos de justificações para todos os atos horríveis que enchem o cinema, o problema está no final.

Céline aproveita uma saída de turma para fugir de casa, escondendo-se num camião. O seu condutor é um escocês, mas podia ser qualquer outra coisa porque não é uma pessoa real, veja-se: a conduzir à noite pelas estradas de França quando de repente vê uma cara no seu retrovisor. Susto? Raiva? Preocupação? Zero. Chama a criança para o lugar da frente e continua a conduzir, parando para comprar alguma comida numa estação de serviço. Admito que não conheço nenhum escocês, mas parece-me estranho que não haja qualquer reação, nem depois de ver a cara de Céline nos monitores de televisão quando entra num hipermercado para comprar cuecas e escova de dentes para esta. Ninguém aqui reage ao facto de um camionista andar com uma criança pequena, apesar de, no final, a polícia rapidamente chegar à conclusão de que ela já não seria virgem. Tudo nesta história acontece porque a realizadora (que também escreveu o filme) assim o quer, sem qualquer realismo ou propósito, como uma máquina automática de fotografias que dispensa cópias convenientes para alguém as poder apanhar, mesmo depois de estas já terem sido colhidas pela protagonista.

Este é um filme que ultrapassa a trapalhice, é estúpido. O pior é quando vem o final, quando Céline volta para casa, o pai lhe promete nunca mais abusar dela e é, de repente, exonerado de qualquer consequência, torna toda esta estupidez em algo verdadeiramente ofensivo. Nem consigo procurar outros significados ao que é dito porque não consigo ultrapassar a camada superficial: se apresentasse um filme com alguém a ser violado, no final deixasse quem o fez safar-se e depois dissesse, pretensioso, que isso representa a atitude dos seres humanos para com a Terra, aposto que não encontraria muitas pessoas capazes de chegar a esse ponto, presas na brutalidade apresentada.

Já agora, o que anda o Toni Negri a fazer por esta lama?

O Melhor: Lou-Léila Demerliac que faz de Céline.
O Pior: O fim execrável.


João Miranda

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