Sábado, 20 Abril

«R100» por Fernando Vasquez

 O absurdismo há muito que vai ganhando novos contornos no cinema japonês. Basta relembrar casos como o de Takashi Shimizu (Marebito), Satoshi Kon (Paprika)ou o ainda mais notório Shynia Tsukamoto (Tetsuo – O Homem de Aço) para nos apercebermos que no Japão a temática é, até certo ponto, uma constante. 

Apesar deste facto, Hitoshi Matsumoto é um caso à parte.  Para além de ser uma autêntica estrela popular nipónica, graças ao sucesso do duo cómico Downtown, o ator e realizador asiático tem vindo a construir uma obra sólida e reconhecida, onde o absurdo e o surreal convivem num universo carregado de sentido. 

R100, o seu mais recente trabalho, explora de novo estes ambientes, só que desta feita de uma forma ainda mais multifacetada e multidimensional. 

O filme narra-nos a história de um empregado de loja, Takafumi Katayama, obrigado a educar o filho sozinho desde que a sua esposa caiu em coma numa cama de hospital. Sedento de estímulos que o façam esquecer as condicionantes do seu azar, decide contratar um serviço sadomasoquista, onde várias mulheres o vão torturando ao longo do dia. Bondage, o clube que oferece tão invulgar serviço, não é uma agência qualquer, e como tal rapidamente a luxúria se transforma num tormento.  Há medida que os “ataques” se tornam mais bizarros, perversos e perigosos, a personagem e todos aqueles que ele mais ama passam a viver sob constante ameaça. 

Numa primeira análise R100 é extremamente eficaz, já que mistura perversão com comédia, alcançando resultados hilariantes incapazes de deixar alguém indiferente, ao mesmo tempo que nos oferece interessantes observações sobre a ténue linha entre a dor e o prazer. As personagens, embora absurdas, são suficientemente ricas e convincentes para que o drama se desenrole com enorme fluidez.  No entanto, o que torna o filme realmente fora de serie são as várias camadas e universos incorporados paralelamente ao desenrolar da história. Estas revelam-se de duas formas diferentes. 

Em primeiro lugar sempre que a personagem atinge o clímax, durante os ataques das dominatrix que o perseguem, Takafumi aparece de frente para a câmara, enquanto ondas sísmicas o rodeiam, visualizando o prazer que lhe percorre pelo corpo. Não se trata de uma mera e tresloucada referência ao desastre de Fukushima. O sismo abalou de tal forma os alicerces da sociedade japonesa, que são raros os filmes recentes que não têm uma alusão ao acidente. Mas Matsumoto vai mais longe, criando uma metáfora deveras interessante entre o desastre e a turbulência emocional do protagonista, que procura grandes transformações vindas do exterior para encontrar novos caminhos para a sua descolorida existência. 

Mais relevante ainda é o facto de que quando a narrativa começa a disparatar, o que acontece com alguma frequência, a imagem corta para uma sala de cinema onde um grupo de censores japoneses estão a assistir ao filme, tentando tirar ilações dos caminhos sinuosos da narrativa que eles e nós assistimos. Tal como Woody Allen o fez no seu auge com grande sucesso, Matsumoto expõem o universo que criou com a mesma facilidade que o construiu, elaborando um filme consciente de si próprio sem que isso afete a capacidade da audiência em se deixar submergir pela fantasia. 

É sem duvida um truque deveras arriscado, mas o cineasta japonês mostra-se em R100 como um mestre conhecedor da sétima arte, conseguindo com isso transformar o seu ultimo trabalho num fenómeno obrigatório em 2014 para todos os amantes do cinema asiático e outros que procuram novos discursos cinematográficos. 


Fernando Vasquez
(Crítica originalmente escrita em janeiro de 2014) 

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