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Thor: Amor e Trovão: ‘Filme da Treta’ versão Marvel

Regado a Guns n’ Roses, “Thor: Love and Thunder” não é um filme de super-heróis. É um filme com super-heróis. Um filme de deboche, algo próximo de uma comédia. Algo mais próximo do “Filme da Treta” (2006), de José Sacramento, do que de “Vingadores”. Está interessado mais em rir dos códigos de aventuras, incluindo aqueles sedimentados por “Erik the Viking”, de Terry Jones, e “Time Bandits”, de Terry Gilliam. Mas é algo sem o refinamento de um Monty Python. Trata-se de (mais) uma longa-metragem com a sanha autoral de Taika Waititi, realizador neozelandês cuja estética parece a do sketch humorístico de TV e cujo ethos dedica-se a demolições morais. A representação do masculino tem sido o seu alvo na sua entrada na franquia “Thor”, a partir de 2017, com o desastroso “Ragnarok”. A diferença é que, neste seu regresso ao universo de Asgard, a morada dos deuses nórdicos, ele lembra-se que o cinema é uma arte de imagens em movimento e não um teatro de revista. Lembra-se disso quando se esforça, dentro do que sabe, para poder apresentar uma narrativa um pouco mais ousada plasticamente. Consegue isso aqui e acolá, numa porção do filme em preto e branco (bem fotografada por Barry Baz Idoine) e na contagiante sequência inicial, na qual Thor põe os seus adversários abaixo, numa sucessão de golpes modulados pela adrenalina. É uma sequência à la John Wick, que Waititi não saberia fazer jamais. Tanto é que, no que sobra, reina o enfado. Dá preguiça ver o empenho do realizador em transformar o que nasceu para ser uma narrativa épica, nos moldes de “Conan The Barbarian” ou “Lord of the Rings”, num episódio de “Flight of the Conchords”. E, para piorar, ainda há um tratamento absolutamente irregular da vilania.  

Somados, os três filmes anteriores da franquia do príncipe de Asgard, lançados em 2011 (“Thor”, de Kenneth Branagh), 2013 (o excecional “The Dark World”, de Alan Taylor) e 2017 (“Ragnarok”, também de Waititi), arrecadaram 1,9 mil milhões de dólares. A nova produção promete elevar essas cifras, moldando um guerreiro implacável como o Deus do Trovão como um Chevy Chase fanfarrão. E há outros chamarizes, como o regressode Natalie Portman como Dra. Jane Foster, mas não apenas como física e, sim, como a nova portadora do martelo Mjölnir. Ela dignifica a releitura que Waititi tenta fazer da saga de BDs iniciada em “Mighty Thor” (2015) #1, com o guião de Jason Aaron. Nessa saga, ela vira a Poderosa Thor. Pode se dizer o mesmo da participação de Tessa Thompson, dando um tom mais pop à figura da Valquíria, agora governante de Asgard. Natalie consegue dar complexidade a um enredo que se agarra a piadinhas, traduzindo a angústia de Jane ao se encontrar na fase terminal de um cancro, que se agrava em metástases a cada uso que faz da marreta sagrada. E Tessa também escava novas potências comportamentais em Valquíria.

Mas no meio do caminho delas, e de Hemsworth, cuja star quality hoje beira as alturas, num binómio de carisma e vastas ferramentas dramáticas, existe uma pedra. Essa pedra é Waititi.

Vencedor do Oscar de melhor argumento adaptado de 2020 por “Jojo Rabbit”, no qual um rapaz alemão era amigo de Hitler (vivido por ele mesmo, uma vez mais no reino da troça), Waititi havia concorrido às estatuetas douradas da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood antes, em 2005, com a curta “Two Cars, One Night”, de 2003. O filme concorreu na festa da Academia de 2005, no mesmo ano em que ele fez “What We Do in the Shadows: Interviews with Some Vampires”, com Jemaine. Nessa curta, ele cria uma estratégia supostamente documental para mostrar o que uma equipa de cineastas faz diante de três vampiros cuja verve aristocrática não parece mais compatível com um mundo interligado pela internet. De novo, ele conseguiu um sucesso, exibindo o filme na sua terra natal, no New Zealand International Film Festival, em julho de 2006. No ano seguinte, ele foi prestigiado pelo público do Festival de Sundance que aplaudiu a (hilária) comédia “Eagle vs Shark” ( 2007), também com Jemaine, e foi, com ele, filmar a já citada série “Flight of the Conchords”.

Em 2010, regressa a Sundance e vai à Berlinale, com “Boy”, comédia agridoce sobre um pequeno fã de Michael Jackson. Na sequência, roda mais uma curta “42 One Dream Rush” e embarca nas séries “Super City” (2011) e “The Inbetweeners ” (2012), enquanto prepara um filme baseado em “What We Do in the Shadows”, que é lançado em 2014, mais uma vez em Sundance. Gasta 1,6 milhões de dólares nas filmagens – realizadas em Wellington, em setembro de 2012 – e consegue 7 milhões nas bilheteiras, configurando um êxito comercial. De novo, ele e Jemaine vão a Berlim, agora concorrendo na mostra Geração, pela sua toada de comédia adolescente, indisfarçavelmente inspirada em John Hughes (1950-2009) e o seu seminal “The Breakfast Club” (1985). Fora os elogios alemães em solo berlinense, Waititi e Jemaine conquistam 26 prémios pelo filme, incluindo a láurea especial do júri do Festival de Turim pelo argumento, e o voto do júri popular da seção Midnight Madness do Festival de Toronto. Sttges, considerado o maior festival de cinema fantástico do mundo, realizado desde 1968 em terras catalãs, deu-lhe uma menção honrosa, seguida do prémio do júri popular. Foi daí que a Marvel se encantou por ele. Mas não avisaram a ele do que os fãs de BDs gostam. E nem o que esses fãs respeitam.  

Filmes de super-heróis, sustentáculo da economia cinematográfica, são, por essência, épicas de autossacrifício: existem cordeiros que se oferecem à imolação em prol da Humanidade. Não existe humor na espinha dorsal desse gesto. Pode haver gargalhadas como apêndice, como efeito de oxigenação da tensão. Pode haver um respiro para o que há de bruto na peleja do sacrificado contra a moléstia moral que leva um vigilante a se arriscar em prol de quem precisa de auxílio. É o que se via em “Homem-Aranha 2”, uma das obras-primas do filão, pilotada por Sam Raimi, em 2014. Pode e deve haver arejamento, pois o riso é um convite ao carisma. Mas esse riso não pode se superpor a essência das narrativas de super-heróis, cuja génese dos quadradinhos vem da ação e não da troça. Existem bds para rir e existem as de super-herói. É assim desde as primeiras viagens galácticas de Buck Rogers, em janeiro de 1929: a pedra fundamental pop da jazida. Mas Waititi não percebeu isso muito bem quando finalizou o corte do histérico “Thor: Ragnarok”, o mais vazio das longas-metragens da Marvel.

No desespero de dar ao conglomerado das bandas desenhadas um novo Deadpool – uma produção de 58 milhões da Fox, que, em 2016, arrecadou 783 milhões -, o cineasta neozelandês resolveu substituir a seriedade épica comum aos vigilantes uniformizados por galhofas sucessivas: é piada atrás de piada, mesmo nos momentos em que elas são desnecessárias. O resultado beira um programa humorístico enrugado.

Porém, esse erro mostra-se ainda mais grotesco frente à maneira como Waititi apresenta a figura do Mal, Gorr, ao escrever o filme em parceria com Jennifer Kaytin Robinson. Apesar de ter nas mãos um dos atores mais talentosos da atualidade, Christian Bale, o cineasta não consegue justificar a vilania que tenta imputar a Gorr. O seu advento é inverossímil. Pior do que isso: Waititi faz com que o público se apiede dele, apesar dos seus crimes envolverem assassinatos. Gorr é alguém que se perdoa à primeira vista. E, para agravar a situação, o redesenho, no trânsito da BD para os ecrãs faz lembrar o Santo dos Assassinos de “Preacher”, da DC Comics. É uma leviandade sem fim, que emperra o que prometia ser um entretenimento com vigor intelectual.

E fica pior quando Thor chega a um Olimpo gourmet, onde as divindades de diferentes civilizações se refugiam, sob a batuta de Zeus. Este é vivido por um Russell Crowe nas raias da caricatura, envergonhando o legado do majestoso “Gladiador” (2000). É mais uma evidência do desaparecimento daquele Waititi cheio de retidão que realizou o episódio 8 da temporada 1 de “The Mandalorian”: ou seja, um Waititi sóbrio, a brincar de Sergio Leone. Ficou o Waititi da galhofa, com pouco ou nada a oferecer.

Carro Rei: A monarquia ciborgue da invenção

Posted By Rodrigo Fonseca On In Entrevistas | Comments Disabled

Apresentando ao mundo há 1 ano e seis meses, durante o Festival de Roterdão, na Holanda, de onde saiu cercado de elogios, o thriller sci-fi Carro Rei arranca, enfim, pelo circuito brasileiro adentro, com o carburador aditivado de prémios. Foram 16 ao todo, conquistados em festivais como Raindance – Inglaterra (Melhor Roteiro); Feratum – México (Melhor Filme de Ficção Científica Latino-americano); Fantasia (Canadá) e Fantastic Festival (EUA). No Brasil, a longa-metragem dirigida por Renata Pinheiro, uma aclamada diretora de arte, arrebatou a competição do CineFantasy, conquistando estatuetas nas categorias Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Ator e Júri Popular. Renata conquistou ainda o disputado Kikito de Melhor Filme em Gramado, a mais popular das mostras do cinema brasileiro. Contabilizou ainda nestas terras as distinções de Melhor Desenho de Som (dado a Guile Martins); Direção de Arte (de Karen Araújo); e Banda-Sonora (de DJ Dolores). E recebeu um prémio especial do júri, dado a Matheus Nachtergaele, por uma vulcânica atuação. É uma longa-metragem que renova a estética de invenção de Pernambuco, de onde saíram Amarelo Manga”, “Árido Movie”, “Boi Neon”, “Aquarius e Bacurau.  

A sua trama lembra muito Bumblebee (2018) nos seus momentos iniciais, quando um rapaz é salvo de um atropelamento por um carro com quem estabelece uma estranha conexão. Por “estranha” leia-se: ele fala com o carro. Anos depois, dedicado ao ativismo ambiental, o jovem (Luciano Pedro Jr.) retoma a relação com o veículo, mas vê o tio, o mecânico Zé Macaco (Nachtergaele), conectar-se com o totalitarismo, e formar um gangue com ímpeto ciborgue.

A cineasta e diretora de arte Renata Pinheiro – Crédito da foto: Raul Toscano

Realizadora de Amor, Plástico e Barulhoe Açúcar, filmado em duo com Sérgio Oliveira, Renata fala ao C7nema sobre sua imersão nas veredas da ficção científica.

Mais do que sedimentar a ficção científica na América Latino, o seu filme reforça a dimensão sociológica do cinema brasileiro ao retratar a revolta das máquinas, via Zé Macaco, de um modo similar ao que se vê em “Metropolis”, de Fritz Lang. As máquinas parecem metáforas da massa operária excluída. Mas que signos conscientes atribui aos carros que ganham vida?

Metropolis”, você me lembrou muito bem. Existe essa semelhança entre as máquinas serem a metáfora da massa operaria excluída. No meu filme, os carros antigos são sucateados pelo sistema capitalista que incentiva o consumo, como também os trabalhadores que são excluídos do sistema. São excluídos uma vez que eles deveriam se endividar para poder entrar no sistema. Num signo direto e consciente, esse carro inteligente e humanizado é um signo de uma inteligência artificial que está cada vez mais presente na nossa vida. É signo também da manipulação de massa pelas redes sociais e gadgets que temos como companheiros agora. São elementos que modificam o panorama de uma sociedade através dessa manipulação muito mais direta e mais presente onde quer que você esteja. Não é só a máquina em si, mas a máquina tecnológica que é um ser influenciador do pensamento e da consciência humana.

Qual é o signo daquele quasímodo encarnado por Matheus Nachtergaele?

Quanto ao Zé Macaco, eu iria para outro pólo, que seria o do brasileiro comum. Frente a um sistema de educação falhado e excludente como o nosso, perdemos diversos talentos em diversas áreas. No caso do filme, Zé Macaco é esse cientista que possui um talento natural para a tecnologia, mesmo sem ter tido uma educação formal. Ele conseguiu ser autodidata e aprender com os manuais dos carros como se constrói um motor e fazer objetos electrónicos. O Zé Macaco é um excluído. Ele é excluído do seu núcleo familiar por conta de ser essa pessoa diferente das outras. É uma metáfora do tanto de gente talentosa que é excluída. No filme, ele transforma essa frustração em um monstro. Essa evolução humana faz ele liderar o gangue. Mas essa liderança não o torna melhor e, sim, um fascista.

A que tradição do pluralíssimo cinema de Pernambuco você acredita se conectar nesse filme? Que recantos de Pernambuco estão ali?

Essa é uma pergunta muito mais para vocês, que têm uma visão de fora das nossas obras. Acho que é um filme que se conecta a uma tradição latino-americana nordestina que é do realismo fantástico. O nosso filme também é uma fábula, conectado à tradição nordestina. É claro que também é impregnado de influências dos nossos colegas, dos nossos filmes, mas eu não te dizer quer dizer qual ou quem. Eu me identifico com a obra do Tavinho Teixeira, um grande colaborador do cinema pernambucano. Pernambuco e Paraíba já foram até um só lugar, mas acho que Tavinho também se utiliza da fábula, da sátira, para falar de assuntos importantes. Se tivesse que apontar referências dos meus pares, colocaria, a princípio, o paraibano Tavinho Teixeira nesse meu lugar de fala.

O cartaz internacional do filme

Quais foram as reações mais inusitadas que você apanhou nas sessões de “Carro Rei” pelo mundo, a partir de sua passagem por Roterdão?
Lançamos o filme para o mundo em janeiro de 2021, em plena pandemia. Inclusive Roterdão não teve sessão presencial. Foram para o ambiente online, como em outros festivais. Até na Coreia fizemos live com sessão comentada. O que mais me impressionou é a capacidade que um filme como esse tem de conversar com diversas culturas. Na Inglaterra, Serginho (Oliveira, produtor e parceiro habitual de Renata) foi e eu estava trabalhando. Mas ele me relatou que o entendimento era muito profundo do filme. Isso surpreendeu muito e foi quando ganhamos um prémio de melhor roteiro. Acho um prémio muito especial, por ser um filme que não tem nada a ver com a cultura inglesa. O que chama mais atenção é a quebra da expectativa de ser um filme que eles esperam vir do Brasil. Esperam um filme sobre violência ou filmes latino-americanos de dramas familiares. Mas “Carro Rei” é um filme que aborda uma outra questão pertinente à Humanidade. De facto, quando estávamos a fazer o filme, eu pensava que iriam me matar por não entrar numa tendência do cinema brasileiro. Mas era o que queria fazer. Não tive medo de reação negativa. Quando a ideia vem, ela aparece com tanta força que chega ser incomodo não a realizar. No site de Roterdão, eles falam dos carros como zombis do capitalismo. Houve muitas críticas e resenhas ao redor do mundo. Cada uma delas vem com uma questão nova sobre o filme. É super satisfatório ter feito um filme com a roupagem muito peculiar e regional, mas que trata dessas questões que são interesse de todos.

Oscars® 2021 poderão ser adiados

Posted By Ana Sofia Santos On In Notícias | No Comments

A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood enfrenta mudanças repentinas e incertezas.

Segundo a Variety, citando várias fontes anónimas, a Academia de Hollywood pondera adiar a 93ª edição da cerimónia de entrega dos Oscars, que está agendada para decorrer no dia 28 de fevereiro de 2021.

Uma dessas fontes avança na possibilidade de uma nova data, enquanto que outra indica que a ABC, a estação televisiva que emitirá o evento, não é favorável à mudança.

Recorda-se que que em abril a Academia anunciou – devido às circunstâncias atuais, consequência da pandemia de COVID19 – algumas mudanças quanto à elegibilidade dos filmes. Nessas novas regras estava a inclusão de produções que foram inicialmente agendadas para um lançamento em sala de cinema, mas que passaram diretamente para o VOD. Esta nova regra só será aplicada até aos cinemas reabrirem.

Após o comunicado das mudanças, David Rubin, presidente da Academia, foi entrevistado pela publicação, e questionado quanto à hipotese de alteração de data da gala de premiação, afirmando ser cedo para discutir “esse cenário.

“O que sabemos é que queremos celebrar os filmes, mas ainda não sabemos exatamente como o fazer.” disse Rubin.

Radu Jude: “Desprezo Andrew Tate, os seus valores e ideias…”

Posted By Jorge Pereira Rosa On In Destaque,Entrevistas | Comments Disabled

Habituado a provocar as audiências, Radu Jude estreou na última edição do Festival de Locarno o seu mais recente filme, “Do Not Expect Too Much From the End of the World” (Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo), um objeto que se multiplica em críticas e sarcasmos à sociedade atual, mantendo o espírito provocador do realizador.

E o famoso, pelas piores razões, Andrew Tate é apenas um dos alvos do cineasta romeno que há dois anos conquistou Berlim com “Bad Luck Banging or Loony Porn”, tudo através de pequenos vídeos que vão ocasionalmente surgindo durante as 2h40 minutos de duração do seu filme, onde a misoginia, o sexismo e muitos outros ismos saltam à vista em cada palavra. “Desprezo-o completamente, os seus valores e ideias. Tudo o que representa. Mas fiquei preocupado e ainda estou porque o meu filho, com 18 anos, de alguma forma, gosta dele”, explicou Radu Jude ao C7nema numa entrevista em Locarno. “Foi por isto que descobri quem é esta pessoa. Comecei a seguir o que dizia e fazia. Assustei-me.”

Descrito pelo cineasta como dois filmes num só, um pouco como antigamente nas duplas sessões de cinema, onde havia um filme principal e outro apelidado de B, “Do Not Expect Too Much From the End of the World” parte de duas histórias reais que aconteceram há muitos anos, mas que agora renasceram na mente, escrita e filmagens de Jude. No filme seguimos Angela (Ilinca Manolache), uma assistente de produção em situação precária que tem como missão ajudar no desenvolvimento de um vídeo encomendado por uma empresa austríaca com filiais na Roménia. Passado grande parte do tempo dentro de um carro, sempre com Julia ao volante, o filme vai revelando personagens no seu caminho, destacando-se a diretora de marketing da empresa de Angela, interpretada por Nina Hoss, e contando até com uma aparição surpreendente do realizador Uwe Boll.

Do Not Expect Too Much From the End of the World

De certa maneira estas coisas aconteceram à minha volta quando trabalhava como assistente de realização”, explicou Jude. Uma das histórias que inspirou este “Do Not Expect Too Much From the End of the World” foi a de um assistente de produção muito cansado que teve de andar às voltas um dia todo de carro e que por causa da fadiga acabou por morrer num acidente. A outra história aconteceu mesmo a Jude, quando fazia um anúncio corporativo sobre vítimas de acidentes de trabalho: “Tudo isto aconteceu há 15 anos e não vi imediatamente um filme nos eventos. Os anos foram passando e de repente comecei a ver que isto ainda diz muito sobre a Roménia nos dias de hoje. Da economia, da vida, etc”. Já sobre o convite a Boll, o cineasta adicionou: “Não sou particularmente fã do tipo de filmes que o Uwe Boll faz, mas lembro-me que há uns anos criaram uma petição para ele parar de fazer filmes. Isso é algo terrível e cruel de fazer a alguém. Criticar é uma coisa, e acho que o devemos fazer. Faz parte da vida. Aliás, acho que hoje em dia critica-se menos do que se devia. Mas dizer a alguém que devia parar de trabalhar é demais. A forma como ele se mostrou resiliente a isso tudo, tornou-o num modelo para mim. Se isso me acontecesse assim, queria conseguir ser como o Uwe Boll.

No filme brinca-se ainda com o célebre combate de boxe que opunha Boll com os críticos de cinema, algo que nunca passou pela cabeça de Jude fazer na sua vida, embora já tenho tido um problema digno de registar com um crítico em particular. “A única vez que disse alguma coisa contra um crítico, ele trabalhava para um local que recebia ajuda financeira nacional: o Festival da Transilvânia. Foi alguém que me atacou utilizando o racismo e o antissemitismo quando lancei um filme sobre o Holocausto. Questionei como um critico importante que trabalha para um festival importante, e que recebe apoio de fundos públicos, faz declarações racistas e deixam-no estar. Foi a única situação”.

Do Not Expect Too Much From the End of the World” estreou nos cinemas portugueses a 1 de maio.

Não Esperes Demasiado do Fim do MundoDo Not Expect Too Much from the End of the World: mais uma aventura ácida de Radu Jude

Posted By Jorge Pereira Rosa On In Crítica | Comments Disabled

Dois anos depois de conquistar a Berlinale com “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”, um ataque brutal à hipocrisia da sociedade atual, o romeno Radu Jude regressa, deste vez em Locarno, com outra aventura ácida que não deixa a contemporaneidade em paz.

Não fossem as claras gorduras (bem calóricas) que encontramos espalhadas um pouco por todo o filme, e “Do Not Expect Too Much from the End of the World” poderia agarrar o status de culto e o selo de obra-prima como a sua longa-metragem anterior. E por gorduras entendam-se sequências e (demasiados) pequenos apontamentos sem real retorno no prazer que tanto se acumulam como se estendem em demasia. Radu Jude pode, e muito bem, questionar se existe um tempo certo para sequências como a das cruzes à beira da estrada, ou múltiplos momentos em que apenas ouvimos uma música e vemos Angela a conduzir, mas a montagem tem de entender que se há uma quebra de ritmo e um arrefecimento do interesse do espectador, é meio caminho para que as pessoas percam o interesse no filme, principalmente se não entrarem (rirem e refletirem) sobre as mil e uma gags e diálogos que se arrastam a história. Aliás, são duas as histórias que serviram de apoio ao filme de Jude, novamente baseado em fait divers: a de um assistente de produção, abusado laboralmente, que acabou por morrer na estrada; e a da realização de um vídeo para uma empresa sobre segurança no trabalho.

Em “Do Not Expect Too Much from the End of the World”, que vai buscar o seu titulo a uma frase de Stanislaw Jerzy Lec, seguimos Angela (Ilinca Manolache), uma assistente de produção em situação precária que tem como missão ajudar no desenvolvimento de um vídeo encomendado por uma empresa austríaca com filiais na Roménia. Passado grande parte do tempo dentro de um carro, sempre com Angela num vai e vem louco, o filme vai revelando personagens no seu caminho, destacando-se a diretora de marketing da empresa austriaca, interpretada por Nina Hoss, e uma aparição de Uwe Boll, que mais uma vez aborda a sua luta no ringue contra os críticos.

Claro está que esta incursão de Jude, que também é sobre a produção de “conteúdos” por entre hipocrisias laborais, não deixa ninguém incólume, incluindo a Ucrânia, a Rússia, a União Europeia e, claro está, a sociedade romena.

Esteticamente o filme é uma orgia de preto e branco granulado de alto contraste, com interlúdios onde o cinema vampiriza os vídeos de baixa resolução, cheio de filtros, das redes sociais. E, claro, por trás de tudo isto está uma atriz, Ilinca Manolache, a vender o corpo e alma ao seu realizador, tal e qual a protagonista de “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”. A romena preenche a sua Angela com camadas e camadas de ironia, sarcasmo, drama e comédia, desde o momento que se levanta e tropeça nua no seu quarto para se preparar rapidamente para durante umas 16 horas por dia fazer pequenos biscates numa Bucareste entupida de trafego.

Sempre corrosivo e provocador, Radu Jude não deixa Angela passar todo o tempo sozinha, mas apenas lhe dá a hipótese de uma rapidinha com um amigo que trabalha na Uber, mostrando assim que não é apenas no trabalho a sua precariedade, mas também na vida pessoal.

Matria: os demónios do quotidiano

Posted By Jorge Pereira Rosa On In Crítica | Comments Disabled

Dando uma nova vida – de longa-metragem – à sua curta vencedora do Grande Prémio do Júri de Sundance, em 2018, Álvaro Gago Diaz executa um verdadeiro ensaio sobre mecanismos de opressão, seja esta laboral, familiar ou social, analisando no processo a condição feminina em todos estes campos. E mais que um drama social, que o é, o galego lança um olhar meticuloso e espesso a uma mulher à procura de afirmação e independência (emocional e económica) no pequeno e limitado mundo que a rodeia.

Definir o estatuto de Ramona – na casa dos 40 anos – como precário é um eufemismo: o seu emprego numa fábrica de conservas quer reduzir-lhe o salário; o companheiro de vida dá mais chatices que fornece ajuda; e a relação com a filha treme a cada circunstância. 

Cabe à atriz María Vásquez vestir a pele desta mulher à beira de um ataque de nervos, presa algures entre o universo realista de problemáticas sociais das figuras do cinema dos irmãos Dardenne, mas também numa posição existencial onde não escapa a influência do cinema de Chantal Akerman. Por isso mesmo, algumas vezes olhamos para Vàsquez, mas quem reflete nela é Delphine Seyrig, havendo na sua Ramona uma total recusa em abraçar qualquer tipo de vitimização.

Na verdade, existem muitos problemas na sua vida, sim, e eles vão se amontoando muitas vezes de forma auto-infligida. Porém, Ramona está disposta lutar contra os demónios internos e externos sem passividade para melhorar a sua situação e, com isso, controlar a sua vida.

Nisto, e de câmara na mão, nunca largando a sua protagonista,, o cineasta entrega ao espectador um verdadeiro tratado sobre as heroínas anónimas do dia a dia, onde o quotidiano marcado pelas regras do patriarcado e capitalismo selvagem continua a ser dominante.

Abigail: Nas presas da eficácia

Posted By Rodrigo Fonseca On In Crítica | Comments Disabled

No auge da Grande Depressão, quando o clima de instabilidade deixado pelo crash da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929, afogou os EUA numa atmosfera de incerteza, a Universal Pictures foi sagaz o suficiente para entender e interpretar o espírito instável daqueles tempos e propor uma imersão em narrativas de terror como forma de exorcizar a atmosfera de medo no ar. Monstros das mais diversas ordens, como lobisomens e múmias, ergueram-se nas telas, a atrair plateias não apenas com uma reflexão cinéfila do Mal, mas com uma engenharia de efeitos visuais e especiais inusitada, artesanal. Após a pandemia, o estúdio resolveu dar uma sobrevida a essa vaga de longas-metragens, primeiro com “O Homem Invisível”, de Leigh Whannell (de 2020), e agora com uma revisão de “Dracula’s Daughter” (1936), chamado de “Abigail”. O nome dá conta da personagem interpretada por Alisha Weir, que se faz de vítima, soa ser frágil, mas revela a sua monstruosidade num esgar de caninos.

A realização da dupla Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett (responsável pelo regresso de “Scream”) esgueira-se com firmeza entre o heist movie e o horror gore, apoiada num orçamento de 28 milhões de dólares. As referências ao filme de culto dos anos 1930 de Lambert Hillyer, sobre a cria do Conde Drácula, são ínfimas. O que vemos é um espetáculo taquicárdico de monstros, no qual uma vampira sedenta de coágulos almeja morder as jugulares de um grupo de criminosos. A montagem eletrizante de Michael P. Shawver (de “Pantera Negra”) é o principal trunfo da fita. A fotografia de Aaron Morton, dionisíaca, faz lembrar os videoclipes dos anos 1990, poluída de cores retintas do começo ao fim.

Apesar da falta de originalidade, o guião conquista a plateia pela eficácia com que lida com as cartilhas do género pelos quais percorre. Na seara do terror, vemos uma mansão de luxo, típica das casas vitorianas dos clássicos da Hammer (produtora prolífica em produções sobre sugadores de sangue), onde uma jovem bailarina, a tal Abigail, é feita de refém por um time de bandidos fracassados. Um ex-polícia vivido por Dan Stevens (em equilibrada atuação) é o mais engenhoso de todos. A mais afetiva do grupo é a médica que caiu em desgraça (por culpa das drogas) Joey (Melissa Barrera). Ela é quem melhor trata a menina raptada até perceber que esta é uma criatura das trevas. Dali para frente, o que se vê é um jogo de gato e rato com uma série de situações na beira da histeria e com diálogos bem-humorados. Eficácia é o que não falta a este divertido thriller sombrio. A Universal marcou um golo no seu esforço de rever o seu próprio legado.

La nouvelle femme, um filme de Léa Todorov

Posted By Lídia Ars Mello On In Crítica | Comments Disabled

Prólogo.  Afinal quem é a nouvelle femme? Maria Montessori [1]. Nascida na província de Ancona-Itália em 1870 (veio a falecer em 1952 nos Países Baixos), médica psiquiatra e educadora pedagoga vanguardista que criou um método revolucionário para tratar e educar crianças com deficiências, estigmatizadas pelas suas próprias famílias e socialmente maltratadas, inclusive abandonadas nas ruas e proibidas de frequentar escolas. Proveniente de uma família de classe média intelectualizada, ela entra no curso de Medicina em 1893, «provavelmente uma das cinco primeiras mulheres em toda a Itália, enfrentando o machismo académico-científico numa época em que mais de 50% da população italiana era composta de adultos analfabetos. Ao final do curso, Montessori tornou-se defensora do feminismo científico, da paridade de direitos e salários entre homens e mulheres. Em 1897, começou a trabalhar como assistente voluntária da clínica de psiquiatria da Universidade de Roma, onde alcançou o cargo de diretora, dentre outras funções e trabalhos que desenvolveu com sucesso ao longo da vida.  Ela foi confrontada entre a sua vida pessoal e a sua carreira por ser uma mulher ambiciosa e feminista, à frente do seu tempo.

Este é o assunto do filme “La nouvelle femme – Maria Montessori”, 2023 com argumento e realização de Léa Todorov (1982-), cineasta francesa nascida em Paris de origem búlgara e norte-americana, estreante em longas metragens. Um drama histórico e biográfico que mistura realidade e ficção, retratando o trabalho precursor e revolucionário de Maria Montessori com a educação especial infantil, independência e inclusão social das crianças com deficiência, a sua militância a favor dos direitos e a emancipação feminina, o questionamento da maternidade e a luta contra o machismo. Nas palavras de Montessori, o seu método de educar as crianças trata de “reavivar a relação da criança com o ambiente, a fim de harmonizar a sua consciência com a realidade externa“, uma educação inclusiva que se adapta à realidade e às necessidades de cada criança. 

Léa Todorov é filha do humanista e crítico literário Tzvetan Todorov (falecido em 2017) e da escritora e feminista canadiana Nancy Huston (1953-). Além da ficção La nouvelle femme, fez o média-metragem documentário “Saving Humanity During Office Hours” (2012), discorrendo sobre a situação de Kosovo nesta época, coescreveu “Révolution École” (2016), atuou em “Memórias da dor” (2017) e em curtas-metragens.

O título da ficção “La nouvelle femme” é uma referência ao feminismo e às práticas de educação especial “La nouvelle éducation”, que difundiu as ideias montessorianas em França a partir de 1921. Protagonizado pelas atrizes, a francesa Leïla Bekhti (de casaco amarelo na imagem acima),que interpreta Lili d’Alengy, e Jasmine Trinca (de blusa preta na imagem acima) no papel de Maria Montessori (atriz italiana que, assim como Léa Todorov, recentemente realizou a sua primeira longa-metragem).   

É relevante que mulheres cineastas tenham, em especial na última década, realizado filmes sobre o universo familiar, histórias muitas das quais elas fazem parte, mas também, a exemplo de Léa Todorov, resgatar no passado histórias de vida de mulheres feministas revolucionárias em suas práticas profissionais (e não só), mulheres que influenciam novas gerações.

A sinopse de “La nouvelle femme – Maria Montessori”, história que se passa em 1900, pode ser assim descrita: Lili d’Alengy, uma famosa cortesã parisiense, que tem um segredo vergonhoso para a época: a sua filha Tina, que nasceu com uma deficiência. A criança vivia com a mãe de Lili, que faleceu. Então, Lili tem que assumir a filha, mas sente vergonha, porque, na visão da sociedade, ter uma filha com deficiência ameaça a sua carreira. Assim, ela decide afastar-se de Paris por um tempo e vai para Roma em busca de uma instituição que acolha e cuide da filha longe dos holofotes da elite parisina. Lá conhece Maria Montessori, a mencionada mulher feminista e médica que desenvolveu um método de aprendizagem vanguardista para crianças especiais. Entretanto, Maria também escondia um segredo: Mário, um filho nascido fora do casamento, filho do homem que era o seu namorado e parceiro de trabalho na medicina. Ter filhos sem se casar era socialmente proibido nos anos 1900. O filho de Montessori vivia escondido e era cuidado por uma mulher-ama, sendo frequentemente visitada pelos pais. Maria quis assumir o filho, mas sem se casar a sociedade não permitia, sendo então forçada a abrir mão da maternidade e se afastar de Mário e do namorado que dizia que a amava, que todavia decidiu se casar com outra e levou o filho com poucos anos de idade. A mãe da criança foi impedida de revê-lo até a idade adulta.   

A vida da personagem Maria Montessori no filme é baseada e inspirada na sua vida real. As duas mulheres, Maria e Lili, tão diferentes e feministas, vão ajudar-se mutuamente a rever os problemas da maternidade, a estabelecer carreira no mundo dos homens e a fazer história. A maternidade não é um mar de rosas para todas as mulheres, para umas, leveza; para outras, fardo; para umas, escolha; para outras, uma obrigação social. Ainda hoje muitas mulheres precisam escolher entre a vida profissional e a maternidade, enquanto os homens-pais continuam tranquilamente as suas carreiras.

Há uma frase num diálogo do filme, entre Maria e Lili, que me marcou imenso: “Podemos confiar o nosso destino a um sentimento tão inconstante como o amor?” Isto relaciona-se com a escolha de Montessori, que foi traída pelo amor do homem que partilhava a vida afetiva e profissional, por ter optado pela sua profissão, pelo empoderamento feminino e ter desafiado as convenções sociais daquele tempo. Os pais de Maria, com quem ela vivia, não aceitavam o seu filho em casa. Para Montessori, o casamento era uma espécie de escravidão e a perda de autonomia da mulher. Ela e o namorado, trabalhavam juntos num Instituto Clínico-Escola, mesmas funções, eram médicos, e ela ainda se dedicava como educadora das crianças com deficiência, entretanto apenas ele tinha salário.

O filme mostra a atriz Jasmine Trinca, interpretando Maria Montessori, no dia-a-dia da prática e progresso do seu trabalho com as crianças com deficiência, sem as expor ou depreciar, pelo contrário, incluindo-as socialmente. Uma obra intimista e política que questiona a maternidade, os problemas ligados à paridade de género, põe em evidência a criança com deficiência e o olhar preconceituoso da sociedade sobre elas.

Na direção equilibrada de Léa Todorov, nem sequer damos conta que as crianças não são atores, pois tudo é muito espontâneo. Segundo ela, existiram muitos ensaios e uma preparação com profissionais que compreendem o universo das crianças que participaram do filme, um longo e minucioso trabalho sem espaço para improvisação. Todas as crianças do filme têm alguma deficiência. Diga-se de passagem, uma delas, Sofia, cerca de 8 anos, é filha da realizadora, é neuroatípica (pessoas com alterações no funcionamento cognitivo, comportamental, neurológico ou neuro anatómico), diagnosticada com uma doença genética rara à nascença. Assim como as crianças do filme, Léa conta numa entrevista [2]que sofreu preconceitos e teve dificuldade de encontrar escola e tratamento para a sua filha. Admiradora do método Montessori, Léa Todorov milita pela inclusão social em seu filme e na vida real.

Em La nouvelle femme – Maria Montessori, Léa Todorov presta homenagem às mulheres que ousam desafiar convenções sociais arraigadas, patriarcais e machistas, para construir um futuro melhor para as próximas gerações femininas. Tendo a oportunidade de ver o  filme, não o percam. Eu o assisti na Festa do Cinema Italiano [3] em Lisboa. VALE MUITO A PENA!  TRAILER [4]

Há três documentários recentes feitos sobre Maria Montessori, mas que distanciam-se do seu trabalho pedagógico: [5]“Le maître est l’enfant [5], de Alexandre Mourot (2017) e dois filmes realizados por Odile Anot: “Une enfance pour la vie” [6] (2022) e [7]Une [7] éducation pour la vie [7]” (2024). Ainda não os vi, mas fica a dica para quem se interessar mais pelo assunto.

Chalengers: Na raquete da leveza

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Formal e espiritualmente, “Chalengers” é uma homenagem a “Jules Et Jim” (1962), de François Truffaut (1932-1984), estruturada sobre o universo desportivo do ténis e calcado em três vibrantes atuações, ofertadas ao público por Zendaya, Mike Faist e (com mais destaque) Josh O’Connor.

Os três vivem uma ciranda de quereres, derrotas e vitória entre idas e vindas no tempo. Luca Guadagnino controla o cronómetro com maestria, frisando a leveza. Não se trata de uma narrativa exasperada como “Call Me By Your Name” (2017), o seu maior sucesso, ou um tratado metafísico como “Bones And All”, que lhe rendeu o prémio de Melhor Realização em Veneza, em 2022. É mais uma “Sessão da Tarde” ou “Matiné“, mas com elegância e miolos.

A partir do guião de Justin Kuritzkes, Guadagnino delicia com a dramaturgia do desporto, nas raquetadas de uma bola numa quadra, a explorar os jogos de ténis sob ângulos inusitados – e ágeis. Galvaniza um ritual monástico de precisão com a raquete ao dar a cada jogada uma abordagem de tensão digna de um thriller. Chega ao ápice de narrar da perspetiva da bola, criando uma narrativa cinemática a cada partida. Entre elas, exercita o seu amor pelo romance e pelo melodrama criando quiproquós afetivos.

Na trama, fotografada com austeridade pelo tailandês Sayombh Mukdeeprom (de “Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas”), Zendaya esbanja firmeza e carisma (mais do que conseguiu em “Duna”) no papel de Tashi, uma ex-prodígia do ténis. Afastada dos jogos após uma contusão, ela virou treinadora e transformou o seu marido. Art (Faist), em campeão. Mas para superar uma sequência de derrotas recentes, o rapaz precisa enfrentar o ex-melhor amigo e ex-namorado da sua companheira, o sedutor Patrick (O’Connor). Em meio ao confronto entre eles, o filme mergulha no passado e conta o que se passou com os dois, tanto na sua amizade de outrora, quanto no encontro com Tashi. Ele usa e abusa das hormonas deles, como a personagem de Jeanne Moreau fazia com Oskar Werner e Henri Serre, de modo a testar toda a sua potência e a celebrar o feminismo.

Num filme despretensioso e bem-humorado, sem medo de ser erótico, Guadagnino revisita um marco das telas, à sua maneira, com mais eficácia do quer conseguiu com “Suspiria” (2018), executando a sua homenagem sem alarde. Visualmente, dá um apuro singular aos figurinos e à direção de arte.

Bas Devos e “Aqui”: “O maior privilégio da minha vida é que posso fazer filmes”

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Com várias curtas-metragens no currículo (“Taurus”, 2006; “Pillar”, 2006; “The Close”, 2007; “We Know”, 2009) e três longas-metragens que estrearam nos mais importantes festivais de cinema do planeta –  “Violet”, 2014 (Berlim); “Hellhole”, 2019 (Berlim) e “Ghost Tropic“, 2019 (Cannes) – o belga Bas Devos regressou à Berlinale com “Here” (Aqui), saindo do certame com o principal prémio da secção Encounters.

No filme, as pequenas invisibilidades do quotidiano vão juntar duas pessoas de origens bem diferentes numa história comum em Bruxelas. De um lado temos uma bióloga (Liyo Gong), fascinada pelo musgo, e do outro um trabalhador da construção romeno (Stefan).

Foi no Berlinale Palast que nos sentámos à mesa com Bas Devos e falámos sobre este pequeno filme que chega às salas de cinema nacionais.

É bastante espetacular a forma como capta as paisagens, quer as urbana quer os rasgos de verde nela, mas também as personagens. Porque optou pelo formato 5:4, “um não formato” , para o seu filme?

Tem muito a ver com esta ideia de perto/longe. Hoje em dia os formatos já não são nada de especial. Vemos imensos filmes em 4:3 e as escolhas dos cineastas parecem aleatórias. Usei este “não” formato pelo jeito como enquadra com os close-ups as personagens no ecrã, mas também porque nos planos de conjunto como essas mesmas personagens estão rodeada, sem espaços “vazios”. Em termos de composição, este formato está mais ligado à forma como eu próprio vejo o mundo, do meu espaço íntimo.

É um cineasta meticuloso, ou seja, pensa em todos os pequenos detalhes quando captura cada frame?

A minha natureza é essa, mas tento escapar um pouco dessa forma controladora em relação a todos os detalhes do filme. À medida que vou envelhecendo, creio que estou a chegar a alguns termos que se cristalizam. Termos que começam a aparecer porque estamos num determinado lugar e tempo. Vejo também o meu emprego como juntar as pessoas, criar conexões, e essa forma controladora que tenho ainda em mim está ligada a modelos de produção. A verdade é  que se quiseres controlar tudo o que aparece numa imagem, isso vai ter um custo (risos). Por exemplo, se quiser captar uma rua e estiver lá uma  grande carrinha que não desejo na frame, essa pretensão vai ter um custo, o que mexe com a produção. Por isso, penso cada vez mais na forma de produzir os meus filmes. Eles têm cada vez menos orçamento e pessoas, ficando assim mais entregues a coincidências.

E essa forma controladora também afeta a sua forma de lidar com os atores?

Gosto de esquecer o guião, o mais que possa. Nas filmagens, nunca ando com o guião atrás. E não ligo tanto às palavras, mas mais às intenções. É tudo sempre sobre atores e a mise-en-scène. Por exemplo, uma cena é sobre as personagens/atores, mas é também sobre a iluminação, o som e muitos outros elementos. Talvez para alguns atores isto seja estranho, não serem o centro das atenções, mas para muitos outros é algo bom porque sentem que fazem parte de algo maior. 

Sinto que existem formas diferentes de comunicar com os atores e, no meu caso, não tenho uma maneira padronizada de o fazer. A forma como falei com o Stefan é diferente daquela que fiz com pessoas que nunca tinham atuado . Adapto-me às necessidades de cada um.

Quando começou a trabalhar neste filme, ou seja, como ele nasceu?

Esta é talvez a pergunta mais complicada de responder e tenho me debatido muito com ela nas diversas entrevistas que dei em Berlim. Esta história veio de diferentes lugares e influências. Desde a minha intenção pessoal em trabalhar com o Stefan, que é um ser humano lindo, a filmar em determinadas locações que conheço, como o edifício que vemos no início ou o restaurante e o parque. Também queria captar as relações sensoriais das pessoas com esses locais. Havia também um interesse em acompanhar as migrações laborais na Europa. Em menos de 7 anos, temos cerca de 43 mil romenos a viver em Bruxelas, o que faz deles uma grande comunidade. Inicialmente, não tinha noção disso. Estas mudanças e migrações alteram a forma como vivemos juntos e tomamos conta uns dos outros.

Por isso, definir um ponto de partida, um momento 0, para criar este filme é difícil de definir.

Para fazer este filme, já mencionou o seu desejo em trabalhar com o Stefan. Como inseriu a Liyo Gong nesta história e como foi o seu diálogo – enquanto realizador – com ela?

A minha abordagem a ela foi completamente diferenciada. Ela é uma montadora e, na verdade, este é o seu primeiro filme como atriz. Ela nunca planeou estar em frente às câmaras, mas eu estava muito interessado em ter uma atriz sino-belga como protagonista. Além disso, na sua vida ela é também DJ, o que –  para quem monta filmes – faz todo o sentido (risos). 

Como ela tinha essa figura de exposição e gostava de estar perante uma audiência, pensei que talvez lhe interessasse atuar no filme. Perguntei-lhe e falei-lhe sobre a personagem. Nestas conversas, onde também fizemos testes perante a câmara, fiquei surpreendido com a forma natural como ela conseguia atuar. Ela é muito inteligente e desafiou a minha escrita, ao fazer uma série de perguntas que questionavam a forma como são retratadas as personagens de origem asiática. Ajudou-me muito e fez o seu papel crescer de tal forma que convenceu-me que era a pessoa certa para ele. 

Bas Devos com o galardão de melhor filme da secção Encounters

Existem pequenos detalhes e elementos no filme, como a história da sopa que o Stefan distribui, o facto de andar sempre de calções (o que se torna uma piada a meio do filme), ou as dissertações sobre o musgo que parecem ter vindo de algum lugar da sua experiência. Como inseriu esses detalhes no guião?

Muitas dessas coisas surgiram no meu processo de escrita, que de certa maneira é estranho e mudou ao longo dos anos. Antigamente, eu lia, via muitas coisas e partia para a escrita. Escrevia e reescrevia o guião até estar pronto para filmar. Agora escrevo uma cena e outra aos poucos, tornando as coisas mais orgânicas e fluidas. E brinco mais com estas pequenas coisas, estes elementos com o seu quê de belo, mas também de tolo. Todas estas pequenas coisas surgiram durante a escrita, mas se não as conseguisse conectar com o global, elas também desaparecem num ápice. Estas pequenas imagens, piadas e momentos têm de se integrar de forma orgânica em algo mais global.

Falou que, ao longo dos anos, mudou a sua maneira de abordar o cinema (dos meios de produção à escrita). Tem de alguma forma um plano para o seu futuro como cineasta?

Tudo é possível, mas creio que seria enfadonho se eu no futuro me repetisse e apenas injetasse novas personagens.

Não quer ser o realizador que faz o mesmo filme vezes sem conta?

Não sei. Creio que podemos facilmente dizer que há elementos em todos os meus filmes que se ligam. Olhando para isso, até é possível que esteja a fazer o mesmo filme vezes sem conta. Mas os filmes nunca são feitos da mesma forma. 

Formalmente, repensar o que estou a fazer e entender porque faço certas coisas de determinada maneira é o que me dá mais prazer. O maior privilégio da minha vida é que posso fazer filmes e que eles são selecionados para festivais, as pessoas assistem e há jornalistas como tu que fazem-me questões sobre eles. É um privilégio, mas também algo que me leva constantemente a questionar e repensar o que é cinema. Porque fazemos filmes? O que são estas imagens num mundo que está cheio delas em todo o lado? E o que difere esta imagem daquela que vemos num conteúdo que assistes numa plataforma de streaming? São estas questões que me movem. Por tal, não me importo de ser categorizado como alguém que faz o mesmo filme constantemente, desde que continue no meu questionamento do que é ser um ser humano.

Ali Cherri e “A Barragem”: “A imaginação é uma estratégia política para a mudança”

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Nascido em Beirute, Líbano, Ali Cherri é artista visual e cineasta sediado em Paris que combina filmes, vídeos, esculturas e
instalações, examinando a construção de narrativas. Depois das curtas-metragens “The Disquiet” e “The Digger“, Cherri estreou-se nas longas-metragens com “The Dam(A Barragem), um trabalho que finaliza uma trilogia dedicada ao que o autor chama de geografias da violência, ou paisagens da violência.

The Disquet” foi filmado no Líbano e examina a violência de uma catástrofe, mais especificamente um terremoto, um fenómeno frequente no país. Já “The Digger” foi filmado num sítio arqueológico no deserto, nos Emirados Árabes Unidos, e questiona a construção de narrativas históricas sobre as quais uma nação se constrói, começando com os artefatos antigos. Em “The Dam” vamos até bem perto da barragem do Merowe, construída pelos chineses no Norte do Sudão.

Foi em Cannes que nos sentámos a mesa com Cherri e falámos desta sua estreia nas longas-metragens, exibida no certame na Quinzena dos Realizadores, antes de agora chegar às salas de cinema.

Como começou a ideia de fazer este “The Dam”?

Estava a trabalhar na questão da água. A primeira vez que fui ao Sudão, em 2017, havia muita tensão em torno do acesso à água do Rio Nilo, com o Egipto a ameaçar derrubar uma barragem. No meu trabalho – venho da arte contemporânea – lido muito com os elementos como uma maneira de entender  questões sócio-económicas e políticas que influem na realidade. Como, olhando para os elementos, começamos a entender tudo à volta deles. 

Por isso, de início, havia a questão da barragem, que era considerada uma das mais destrutivas do planeta. A primeira vez que fui lá, observei apenas o local e conheci as pessoas que lá trabalhavam. Cerca de 50 mil pessoas trabalham direta ou indiretamente para essa barragem. Porém, muitas pessoas que viviam no deserto de Núbia, recusaram abandonar as suas casas por causa dela, tendo o governo sudanês decidido abrir as comportas e inundar a área, tendo estas escapado por pouco, levando apenas o que podiam. Existiram muitas manifestações contra esta barragem e várias pessoas morreram no processo.

O filme faz um jogo entre o realismo e alguns elementos mais oníricos, que chamaremos de “mágicos”. Como geriu essa mistura de elementos?

Era muito importante para mim ancorar o filme num contexto muito particular. Politicamente, sabemos que era o princípio da revolução que depôs Omar Hassan Ahmad al-Bashir [2019]. É um filme muito agarrado a esta realidade. Além disso, todas as locações são reais. Queria assim criar tensão dentro de uma realidade e contexto político muito real.

Por outro lado, queria também focar como o poder da imaginação pode levar a transformações da realidade. O nosso protagonista, Maher, usa a sua imaginação como uma ferramenta para a sua emancipação socio-económica, para melhorar a sua condição. Uso a imaginação, essa “magia”, como uma ferramenta de mudança. Se pensarmos bem, a primeira coisa que os regimes autoritários e ditatoriais, especialmente do mundo árabe, fazem é colonizar a nossa mente com a ideia que não conseguimos viver sem eles. Ou seja, nem conseguimos imaginar uma realidade em que esses ditadores não existem. Por isso, acho que para a mudança temos de reocupar o espaço da nossa imaginação. Se quero mudar o mundo onde vivo, tenho de o conseguir imaginar na minha mente. A imaginação é assim uma estratégia política para a mudança.

Toda a gente no meu filme faz o seu próprio papel, ou seja, todos são não-atores. No caso do Maher, a primeira vez que o vi disse-lhe que estava a fazer este filme. Ele disse-me que adorava atuar e que tinha o sonho de se tornar ator. É um sonho que mesmo depois de participar no meu filme ele tem ainda para concretizar, embora um realizador sudanês tenha afirmado que queria ver como ele tinha atuado neste filme, pois talvez tivesse um papel para ele.

Ali Cherri
[8]

E como foi trabalhar com o Maher e com não-atores?

Trabalhar com ele foi acima de tudo uma questão de confiança. Não venho do cinema, nem estou interessado em trabalhar com atores e métodos, por isso teve de existir da parte dele um forte acreditar. Conheço-o há cinco anos e passei vários meses lá, tendo construído uma relação de confiança com ele. E criou-se uma certa conexão, em que nos entendemos bem e ele percebia o que eu desejava, entregando a intensidade que pretendia. Creio que encontrámos a maneira certa de trabalhar de forma orgânica.

Qual a importância do silêncio no seu filme? A maioria das vezes estamos entregues a ele e apenas temos acesso aos sentimentos através das expressões corporais do protagonista. Como trabalhou isso com ele?

O silêncio faz parte da comunidade em que vivem. Muitos deles são trabalhadores sazonais e vivem quatro ou cinco na mesma cabana. Eles são muito próximos e colaboram entre si, havendo um real sentido de comunidade. Mas, simultaneamente, existe muito silêncio entre eles. Eles não falam muito. Eu estava interessado neste silêncio, onde a rádio se transforma num ruído que o invade.

Quanto à expressividade, o Maher tem um rosto super-expressivo e logo que entendia o que se pretendia, entregava facilmente o que queríamos. Tem uma grande capacidade para isso. 

Apesar da importância do silêncio, o Ali povoa o seu filme com sons da natureza com grande espetacularidade e poder de imersão. Como trabalhou o som e quão importante era o seu uso e montagem para o filme?

Estou sempre muito interessado no som e trabalho muito com paisagens sonoras. Para mim é um elemento essencial do meu trabalho e sou particularmente sensível a isto. No Sudão estamos rodeados por milhões de sons, com mudanças entre o noite e dia. Mas não existem nestes locais o que chamamos ruídos da cidade e, como tal, podemos ouvir os sons mais longínquos e claros.  

O filme vem carregado de elementos simbólicos, como a natureza que cura a sua ferida, mas igualmente existem nele outros elementos invisíveis que também podem refletir essas feridas. Como trabalha o conceito de ferida, quer explicitamente, quer de forma invisível?

O conceito de “ferida” é algo muito presente na minha obra artística. Ainda recentemente trabalhei num projeto onde observamos trabalhos artísticos “feridos”, ou seja, vandalizados. Trabalho muito nestas “feridas” e como as curar. O que é interessante para mim na energia de uma “ferida” é que ela é um ponto de encontro entre o exterior e o interior, em que este último pode ser invadido pelo primeiro. Por isso, no filme, a ferida que vemos é a penetração de um mundo noutro. E há todo um imaginário em torno desta ferida, como lhe tocas para sentir dor, mas também para limpar. E pôr o dedo na ferida é uma expressão que evoca o apontar o problema. Há assim um abordar a ferida como algo frágil, mas igualmente poderoso.

Depois temos outras feridas que não estão explícitas, que se tornaram invisíveis e são mais difíceis de curar. E podem aparecer em pessoas ou na paisagem.

Que inspirações cinematográficas tem?

Uma das maiores é Tsai Ming-Liang e a forma como ele trata o tempo e a durabilidade. Este é, sem dúvida, um cineasta a que reajo com grande sensibilidade.

Adirley Queirós e Joana Pimenta em destaque no FIDMarseille

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O brasileiro Adirley Queirós e a portuguesa Joana Pimenta vão estar em destaque no FIDMarseille, evento que decorre na cidade de Marselha de 25 a 30 de junho.

Segundo o certame, em comunicado, “nas últimas duas décadas, Adirley Queirós tem feito cinema com os habitantes de Ceilândia, cidade satélite de Brasília. Desde ‘Rap, O Canto da Ceilândia’ (2005), cada filme é inventado como um protótipo, combinando material documental e energias ficcionais para inverter a relação entre o centro e a margem. Arquivos reais e falsos, antecipação e distopia, rádio local e música urbana: um povo minoritário revive o poder político do cinema para imaginar a sua memória, para retratar a sua raiva e a sua esperança de mudança“. Já Joana Pimenta trabalha entre o Brasil e os Estados Unidos e realizou duas curtas-metragens (As Figuras Gravadas Na Faca Com a Seiva Das Bananeiras; An Aviation Field) que, “numa linguagem completamente diferente – a do ensaio experimental -, juntam o cineasta brasileiro num território comum: o da contra-história (colonial) e da memória ficcionada“. Em 2017, Queirós convidou-a para trabalhar como diretora de fotografia em “Era uma vez Brasília“. Depois disso, a dupla correalizou “Mato seco em chamas [9]“, em 2022.

Esta retrospectiva continuará em Paris, de 5 a 8 de julho, quando a 35ª edição do FIDMarseille chegar à Cinemateca Francesa.

“Rebel Moon – Part 2: The Scargiver” supera – e muito – as falhas e ambições do original

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Projetado como um artesão de sequências de batalha e perseguição há duas décadas, o Zack Snyder espartano de “300” (2007) regressa no apogeu da forma em “Rebel Moon – Part II: The Scargiver”. O segmento de “A Child of Fire”, parte um do díptico (possivelmente tríptico) que lançou no Natal de 2023 na Netflix, chega ao streaming este mês a esbanjar destreza, sempre nas franjas autorais do seu realizador. Há uma luta de espadas nos momentos finais capaz de servir como homenagem ao duelo de esgrima entre os Skywalker, Luke e Anakin (sob o manto de Darth Vader), em “O Império Contra-Ataca”.

Rodado em Inyo County, na Califórnia, com base num orçamento de 83 milhões de dólares, “The Scargiver” consegue oxigenar a falta de ar criativo do episódio anterior, em especial pelo facto de mostrar maior intimidade dos seus (bons) intérpretes com as personagens. O melhor exemplo é Sofia Boutella. Agora, sim, Kora – guerreira arrependida dos seus vínculos com um império maligno, atormentada por um crime de seu passado – transforma-se numa protagonista à altura do que o projeto precisa. Projeto esse com ambição de ser mais do que um passatempo de plataforma, numa conformidade com tudo o que Snyder faz.

Em 2004, um remake de “Dawn of the Dead” acendeu as lâmpada de Hollywood num alarme de que, onde antes havia apenas um competente fazedor de videoclipes (para Rod Stewart, Morrissey, Lizzy Borden), agora há um cineasta com potencial assinatura. A sua identidade mais forte, além da habilidade de construir batalhas sob ângulos inusitados, é a mirada niilista. Ela processa-se uma vez mais no tomo dois de “Rebel Moon”.

O diálogo da trama do filme com “Os Sete Samurais” é inquestionável, sobretudo, na criação de um grupo de soldados (regressados de experiências distintas) para ajudar uma comunidade oprimida. Em “The Scargiver”, Kora (Sofia) prepara-se para uma ofensiva das armadas de Realm contra o povo de Vedt, estabelecendo com os os seus parceiros estratégias de ação. Ao longo de duas horas, somos melhor apresentados às personagens, sobretudo ao general Titus, vivido por um (agora) inspirado Djimon Hounsou, antes mal aproveitado. Na produção anterior, ele era descrito como o maior combatente que já existiu, mas não fazia jus à sua alcunha. Agora, o epíteto já lhe cabe.

Snyder traz de “Army of Dead” (2021) o frenesim contínuo e assina a fita em aceleração plena. O cuidado de humanizar cada figura, dos heróis e dos vilões (como o almirante Noble, de Ed Skrein), não lhe sai da vista. A montagem dá conta dessa busca da realização em oferecer ao público uma montanha-russa que eleva – e muito – o nível dos Netflix Originals.