Sexta-feira, 3 Maio

«The Armstrong Lie» (A Mentira de Armstrong) Roni Nunes

Num controverso filme dos anos 90, Um Dia de Raiva, de Joel Schumacher, um enfurecido Michael Douglas agarrava num bastão de basebol e saía a demolir (literalmente) todas as mentiras que a sociedade lhe tinha impingido. Será essa a explicação que ele dará no final, encurralado depois de um dia de escaramuças diversas, ao policia vivido por Harvey Keitel, que responde: “Mas, Mr. Foster, até os peixes mentem!”. A imagem do uso de um artifício concreto para desfazer falsidades ideológicas serve bem de ilustração para a experiência que é este A Mentira de Armstrong.

Antes de tudo, é preciso que se diga que nada era para ser assim – nem o desenlace final da história do ciclista Lance Armstrong, nem o próprio filme. O oscarizado realizador Alex Gibney, que já estava bem familiarizado com mentiras depois de ter feito filmes sobre o escândalo da Enron ou a prática de tortura pelo governo dos Estados Unidos, preparava-se apenas para retratar o retorno do atleta à volta de França, em 2009, depois de cinco anos de afastamento.

A expectativa era enorme: Armstrong era tão-somente um dos maiores ciclistas de todos os tempos, tendo vencido a competição por sete vezes. Mas já com muitas acusações de doping a chamuscar a sua imagem, ele queria provar para todos que era capaz de vencer… sem batota. Ao invés de mostrar a luta de um homem para retornar a ser rei na sua atividade, no entanto, o projeto de Gibney foi atropelado pelos acontecimentos: neste mesmo ano, tornavam-se irrefutáveis as provas de que Lance Armstrong usara diversas substâncias proibidas em todas as suas vitórias. Tentando remediar o impossível, o atleta vai ao programa de Oprah Winfrey e confessa tudo. O que se segue é uma das mais dilacerantes quedas de um mito de que se têm notícia.

Com tal material nas mãos, era impossível a Gibney errar. Sem assumir quase nunca uma atitude hostil e deixando os factos falarem por si, ele organiza duas horas intensas de filme, onde vem tudo à tona: os esquemas de doping generalizado a envolver o desporto, os patrocinadores a faturarem milhões com os contratos com Armstrong, a atuação corrupta da organização que gere o ciclismo e a coragem de uns pouquíssimos jornalistas que arriscaram as suas carreiras e perderam processos judiciais a tentar desmascarar o ciclista. Diante daquilo que o filme mostra e que culmina com uma cena extraordinária onde toda a equipa norte-americana pratica uma falsificação do sangue num autocarro estacionado à frente do público e da imprensa (!), chega a ser pouco e hipócrita banir Lance Armstrong do desporto: o que devia ser banido era TODO o ciclismo como categoria que move dinheiro e, de forma contínua, enganou os seus espectadores.

Mas, apesar da reação de incredulidade que em diversos momentos suscita, é ao flagrar a desconstrução de um mito que esta obra encontra os seus grandes momentos, pois poucas vezes na história uma figura pública é desmascarada desta forma, expondo com isso toda a estrutura dos circos mediáticos a que a sociedade ocidental é sujeita todos os dias. Neste sentido, não é de todo verídica a afirmação de Armstrong de que “não viveu muitas mentiras, mas viveu uma grande mentira“. Ocorre que esta “grande mentira” envolveu anos e anos de teatro calculado, onde fica-se perplexo diante da desfaçatez, do descaramento, da indiferença com que um homem mente na televisão, nas conferências de imprensa, em toda a parte. A obra também mostra a forma inteligente (e calculista) com que o atleta conseguiu aproveitar um momento de desgraça pessoal (quando teve cancro) para forjar o mito da “superação” que os norte-americanos (e o resto do mundo) tanto gostam.

Essa história deveria servir para a promoção de uma verdadeira revolta iconoclasta generalizada. Mas, como o próprio Gibney diz a certa altura, a fazer eco ao famoso mito platónico da caverna, “nós queremos ser enganados“. Que venham mais Armstrongs.

O Melhor: a forma como organiza um material complexo e polémico
O Pior: deixa alguns pontos por esclarecer – particularmente sobre a Volta à França de 2009


Roni Nunes

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