Num controverso filme dos anos 90, Um Dia de Raiva, de Joel Schumacher, um enfurecido Michael Douglas agarrava num bastão de basebol e saía a demolir (literalmente) todas as mentiras que a sociedade lhe tinha impingido. Será essa a explicação que ele dará no final, encurralado depois de um dia de escaramuças diversas, ao policia vivido por Harvey Keitel, que responde: “Mas, Mr. Foster, até os peixes mentem!”. A imagem do uso de um artifício concreto para desfazer falsidades ideológicas serve bem de ilustração para a experiência que é este A Mentira de Armstrong.
Antes de tudo, é preciso que se diga que nada era para ser assim – nem o desenlace final da história do ciclista Lance Armstrong, nem o próprio filme. O oscarizado realizador Alex Gibney, que já estava bem familiarizado com mentiras depois de ter feito filmes sobre o escândalo da Enron ou a prática de tortura pelo governo dos Estados Unidos, preparava-se apenas para retratar o retorno do atleta à volta de França, em 2009, depois de cinco anos de afastamento.
A expectativa era enorme: Armstrong era tão-somente um dos maiores ciclistas de todos os tempos, tendo vencido a competição por sete vezes. Mas já com muitas acusações de doping a chamuscar a sua imagem, ele queria provar para todos que era capaz de vencer… sem batota. Ao invés de mostrar a luta de um homem para retornar a ser rei na sua atividade, no entanto, o projeto de Gibney foi atropelado pelos acontecimentos: neste mesmo ano, tornavam-se irrefutáveis as provas de que Lance Armstrong usara diversas substâncias proibidas em todas as suas vitórias. Tentando remediar o impossível, o atleta vai ao programa de Oprah Winfrey e confessa tudo. O que se segue é uma das mais dilacerantes quedas de um mito de que se têm notícia.
Com tal material nas mãos, era impossível a Gibney errar. Sem assumir quase nunca uma atitude hostil e deixando os factos falarem por si, ele organiza duas horas intensas de filme, onde vem tudo à tona: os esquemas de doping generalizado a envolver o desporto, os patrocinadores a faturarem milhões com os contratos com Armstrong, a atuação corrupta da organização que gere o ciclismo e a coragem de uns pouquíssimos jornalistas que arriscaram as suas carreiras e perderam processos judiciais a tentar desmascarar o ciclista. Diante daquilo que o filme mostra e que culmina com uma cena extraordinária onde toda a equipa norte-americana pratica uma falsificação do sangue num autocarro estacionado à frente do público e da imprensa (!), chega a ser pouco e hipócrita banir Lance Armstrong do desporto: o que devia ser banido era TODO o ciclismo como categoria que move dinheiro e, de forma contínua, enganou os seus espectadores.
Mas, apesar da reação de incredulidade que em diversos momentos suscita, é ao flagrar a desconstrução de um mito que esta obra encontra os seus grandes momentos, pois poucas vezes na história uma figura pública é desmascarada desta forma, expondo com isso toda a estrutura dos circos mediáticos a que a sociedade ocidental é sujeita todos os dias. Neste sentido, não é de todo verídica a afirmação de Armstrong de que “não viveu muitas mentiras, mas viveu uma grande mentira“. Ocorre que esta “grande mentira” envolveu anos e anos de teatro calculado, onde fica-se perplexo diante da desfaçatez, do descaramento, da indiferença com que um homem mente na televisão, nas conferências de imprensa, em toda a parte. A obra também mostra a forma inteligente (e calculista) com que o atleta conseguiu aproveitar um momento de desgraça pessoal (quando teve cancro) para forjar o mito da “superação” que os norte-americanos (e o resto do mundo) tanto gostam.
Essa história deveria servir para a promoção de uma verdadeira revolta iconoclasta generalizada. Mas, como o próprio Gibney diz a certa altura, a fazer eco ao famoso mito platónico da caverna, “nós queremos ser enganados“. Que venham mais Armstrongs.
O Melhor: a forma como organiza um material complexo e polémico
O Pior: deixa alguns pontos por esclarecer – particularmente sobre a Volta à França de 2009
Roni Nunes