Quinta-feira, 25 Abril

Festival de Jerusalém: apetite voraz de Cinema do Mundo em terras distantes

Uma das mais impressionantes vitrines sobre a produção fora de Israel.

Situado no Vale de Hinom, com vista plena aos arredores de Jerusalém e ainda para parte da Palestina, a Cinemateca de Jerusalém, edifício que contrasta com o velho e seco aqueduto que dá hoje o nome de A Piscina do Sultão, albergou uma das mostras cinematográficas mais entusiasmantes de Israel. Para além da colheita anual do cinema local e nacional, a 36ª edição do Festival de Jerusalém apresentou-se como um apanhado das propostas mais faladas e elogiadas deste 2019.

Não é por menos que a abertura, numa gala que contou com a presença do presidente do estado, Reuven Rivlin, e ainda uma das figura mais queridas da cinematografia israelita, Katriel Schori, o qual recebeu o prémio de carreira, tenha sido brindada com a projeção do grande vencedor da Palma de Ouro, Parasite, uma das sensações do ano, não apenas pelo malabarismo de tons que o sul-coreano Bong Joon ho nos oferece, como também é uma narrativa plenamente sóbria e ao mesmo tempo minada de metáforas. Uma família precária que sobrevive à conta de esquemas tem o plano perfeita para sair da subsistência, “penetrar” numa outra família de novos ricos. Contudo, algumas reviravoltas vão lhe estragar os planos. O anterior realizador de Okja e Snowpiercer lida com questões sociais entre classes e estatutos com um energia vitalizadora e sempre atencioso às suas personagens. No final, as caricaturas acabam por nos falar mais alto.

Dor e Glória

Extraídos cuidadosamente do mediático Festival de Cannes, alguns dos filmes mais celebrizados dessa seleção preencheram as diferentes secções de Jerusalém, com principal destaque para a Dor e Glória, o mais recente trabalho de Pedro Almodóvar, cujo irmão e produtor, Agustin, teve as boas graças de apresentar a sessão. Apesar da ausência do “Pedrito”, este é um projeto onde sente-se em bruto a sua pessoalidade e intimismo. Antonio Banderas, num dos seus melhores desempenhos, caindo nas boas graças do júri da última edição do Festival de Cannes, é um realizador de antigos sucessos preso a um vórtice existencial. Profundamente simples sem cair nas ênfases dramáticas, Dor e Glória remete-nos, como o próprio Banderas diz, ao “cinema da nossa infância” com tudo incluído.

Não diremos infância para nós, mas o cinema tem a tendência de remeter o passado como dispositivo natural para entendermos o nosso presente. Nesse signo, vindo do Brasil, a (não) invisibilidade de Eurídice Gusmão (Carol Duarte) promete fazer das “tripas coração” os espectadores através do romance de Martha Batalha. Aqui, o realizador Karin Aïnouz, responsável por filmes como Madame Satã e Praia do Futuro, demonstra o porquê de precisarmos tanto do cinema brasileiro, e muito mais em tempos obscuros que vivemos. Premiado na última Certain Regard, em Cannes, este épico emocional é um dedicado retrato dos sonhos desfeitos e da discriminação com que tantas mulheres passaram, não há tanto tempo assim. Enquanto isso, as perspetivas sociais são somente reconstituições, porque a força reside na sua intriga: duas irmãs, filhas de imigrantes portugueses no Rio de Janeiro, separadas pelo destino e que a todo o custo tentam reencontrar-se. As pontadas de emoção fizeram desesperar o público israelita, dando a entender que a fraternidade fala uma língua universal. Possivelmente, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão é um dos grandes filmes do ano.

A Vida Invisível de Eurídice Gusmão

Vindo do Canadá, Denys Arcand, um dos politizados ao serviço do audiovisual, experimentou o humor com o cinema de golpe em A Queda do Império Americano, o final da trilogia iniciada em O Declínio do Império Americano (1986) e atingido o seu apogeu em 2003, o oscarizado As Invasões Bárbaras. O seu fervoroso ativismo é aqui restringindo a uma ilusão, uma imagem dos novos tempos em que as ideologias de esquerda falham perante a dominância do capitalismo. Tudo inscrito num fruto do acaso, um estafeta que se vê na posse de uma grande quantia de dinheiro originário de um fracassado assalto, que tenta inibir-se da culpa através de uma esquema de lavagem no âmbito de solidariedade. O sangue na guelra de Arcand é substituído por uma certa ingenuidade de quem acredita ser um Robin dos Bosques moderno.

Mas a proposta algo falhada não condena a experiência cinematográfica de requinte, um verdadeiro buffet onde podemos apanhar os incisivos retratos de feminilidade de Céline Sciamma, com Portrait de la jeune fille en feu, a inclusão social a servir de palco de guerra em Les Miserables, do muito promissor Ladj Ly, ou os retalhos de uma Polónia por vias de Pawel Pawlikowski, cineasta em retrospetiva. Ou seja, tivemos toda uma diversidade para entreter o nosso paladar e nada melhor num “restaurante” com um constante cheiro de película e vinagre.

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