Sexta-feira, 29 Março

Vitória de Karim Aïnouz em Cannes oxigena o melodrama como código do mundo

A vida invisível de Eurídice Gusmão venceu a Un Certain Regard

Nas 71 edições que se passaram de Cannes, antes da competição de 2019, que se encerra neste sábado tendo Dor e glória, do espanhol Pedro Almodóvar, como um favorito (ganhe ou não, ele fez um “filmaço”), o Brasil conquistou, com longas-metragens, uma única Palma de Ouro (em 1962), com O pagador de promessas, um troféu L’Oeil d’Or (em 2016, com Cinema Novo), um prémio de realização (em 1969, dado a Glauber Rocha) e um par de distinções na interpretação feminina (Sandra Corveloni, em 2008; Fernanda Torres, em 1986). No entanto, no dia 24 de maio deste ano de tempestades económicas e políticas na geografia humana brasileira, o cearense Karim Aïnouz consagrou-se com o Prix Un Certain Regard por A vida invisível de Eurídice Gusmão, um caudaloso painel de duas solidões que se aguardam, separadas pelo sexismo do Rio de Janeiro dos anos 1950.

Raras vezes se ouviu, da Salle Debussy do Palais des Festivals de Cannes, um choro tão forte quanto o que A vida invisível... fez desabar, coletivamente. Os soluços vinham na evocação de uma canção de Lupicínio Rodrigues que traduz o filme, Um favor, na voz do Jamelão: “Eu hoje acordei pensando/ Por que é que eu vivo chorando/ Podendo lhe procurar/ Se a lágrima é tão maldita/ Que a pessoa mais bonita/ Cobre o rosto pra chorar/ E refletindo um segundo/ Resolvi pedir ao mundo/ Que me fizesse um favor/ Para que eu não mais chorasse/ Que alguém me ajudasse/ A encontrar meu amor/ Maestro, músicos, cantores/ Gente de todas as cores,/ Faça esse favor pra mim/ Quem puder cantar que cante/ Quem souber tocar que toque/ Flauta, trombone ou clarim“. Acrescente piano à lista acima, pois é um instrumento fundamental ao universo que se ergue em torno da relação ausente (ou onipresente na ausência do banzo) entre duas irmãs, dos anos 1950 aos tempos de hoje. Nesse filme que fura o sinal vermelho da moral folhetinesca, há uma vivência de amor abortado que, aqui, espalha-se no tempo por cartas que nunca chegam.

Com cerca de 2h20 de uma sensorialidade à flor da pele, num tipo de narrativa de invenção que substitui o épico pela poesia, A vida invisível de Eurídice Gusmão tece sua estrutura a partir de uma troca de cartas entre um remetente sedento de se fazer ouvir e de um destinatário oculto. Não cabe muito explicar por que o filme faz isso. Não é da natureza de Karim explicar muito. Às vezes, um corte pode fazer avançar cinco décadas, sem que nenhum preâmbulo seja feito, mas as explicações estão todas ali, nas cartas e numa forma de enquadramento (a fotografia é Hélène Louvart, de Pina de Wim Wenders) capaz de traduzir em cores e focos inusitados como é o cheiro de um lança-perfume. Como é o éter na mente… eternamente inebriante.

Falar, as cartas falam. Há um livro chamado Cartas roubadas. Quem escreveu foi o “Lupicínio” do cinema francês, Gérard Depardieu. Numa delas, escrita postumamente para François Truffaut, depois que este morreu, em 1983, Depardieu, no abraço partido dos que ficam, escreveu: “François, depois que morreste, não há mais lugar para histórias de amor nos ecrãs”. Erro. Erro que a saudade produz: o filme de Karim é a prova do contrário. O amor existe, assim como existe a vida, a sua inimiga. A questão do amor escreve-se como quem comporta muitas formas – como a fraternidade de Eurídice e de Guida, irmãs que Carol Duarte e Júlia Stockler esculpem na pedra, num batismo de fogo na maternidade dos grandes papéis de nosso cinema. Livre adaptação do romance homónimo de Martha Batalha, a história delas converte literatura em sensação.

Cá pela Croisette, onde Almodóvar, Justine Triet, Bong Joon Ho, Marco Bellocchio, Céline Sciamma e Terrence Malick são os mais potentes nomes na disputa pela Palma de Ouro, a mostra Un Certain Regard seguiu Karim. Produção de Rodrigo Teixeira e da sua RT Features, agora em parceria com a produtora alemã The Match Factory, o novo filme do realizador de Madame Satã (2002) mostra que as irmãs Guida e Eurídice são cúmplices no afeto, inseparáveis no dia a dia. Eurídice, a mais nova, é uma pianista prodígio, enquanto Guida, romântica e cheia de vida, sonha em casar e fazer família. Um dia, com 18 anos, Guida foge de casa com o namorado, um marinheiro grego, com mel no pi e na delta. Ao retornar grávida, seis meses depois e sozinha, o pai, um padeiro português conservador, expulsa a menina de casa. Guida e Eurídice são separadas para sempre e passam as suas vidas tentando o reencontro. Coisa de Rádio Nacional. Ou de Lupicínio, ao dizer: “de uma coisa podes ter certeza/ O teu lugar aqui na minha mesa/ Tua cadeira ainda está vazia/ Tu és a filha pródiga que volta/ Procurando em minha porta/ O que o mundo não te deu“.

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