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Berlinale: um palmarés sem corpo nem alma

Um palmarés [1] inesperado e polarizador o que o júri liderado por Verhoeven acabou por criar. Não era pouco expetável que On Body and Soul de ldikó Enyedi saísse o grande vencedor. A história de amor entre uma mulher emocionalmente distante e um homem com um braço paralisado, ambos trabalhadores de um matadouro, arrecadou boas críticas e aplausos entusiastas desde o começo. Mas Aki Kaurismäki já anda há 30 anos entre Berlim, Cannes e Veneza, ainda não tendo ganho o galardão máximo em nenhum deles. Daí que as preferências recaíssem (de forma perfeitamente justa) para o seu The Other Side of Hope [2], um dos melhores exemplos da sua carreira e o filme com maior relevância política da seleção competitiva. Teve de se contentar com o prémio de realização.

Já outro dos grandes favoritos, Una Mujer Fantástica [3] de Sebastian Lélio, também era certo que seria premiado. Mas, erro crasso, o júri julgou que a força do filme residia no argumento, quando, na verdade, está distintamente na atriz Daniela Vega que se entrega e expõe completamente sendo capaz de acarretar durante hora e meia o filme às costas. Dela e do realizador, capaz de construir um elevado clima de tensão perfeitamente equilibrado com os desempenhos dos seus atores. O prémio de segundo melhor filme seria mais meritório com este caso do que Felicité de Alain Gomis, luta de uma mulher de classe baixa para arranjar dinheiro para a operação do seu filho. Filme pouco equilibrado e registado num estilo nervoso quase plagiado dos irmãos Dardenne, com uma última meia-hora que cria um happy ending mais forçado que propriamente recompensador.

Verdadeiramente inadmissível é a premiação do ridículo Spoor [4], thriller ecológico polaco onde uma assassina em série vegan mata caçadores em defesa dos animais numa Polónia em época de caça. Tratou-se do único filme da seleção a ser vaiado (embora tenha também obtido aplausos), mas isso não o impediu de arrecadar o prémio Alfred Bauer (atribuído a filmes que “abrem novas perspetivas da arte cinematográfica”) por motivos que só o júri saberá.

Sobre os atores, Kim Minhee era a segunda favorita deste Festival (a seguir à já referida Vega) pelo seu fantástico desempenho em On the Beach at Night Alone. Mas Georg Friedrich parecia uma escolha fácil, se bem que não a mais acertada, já que Bright Nights de Thomas Arslan concentra-se inteiramente na relação de aproximação com o seu filho num road movie que, tal como o desempenho do protagonista, encontra-se num registo minimalista. Está, por exemplo, a milhas atrás do trabalho de representação de Mircea Postelnicu em Ana, Mon Amour, onde o ator transforma-se física e emocionalmente numa intriga complexa e que abrange vários anos do romance de um casal.

Foi por este filme, aliás, que a editora Dana Bunescu venceu o prémio de melhor contribuição artística. É, afinal, graças a ela que o filme adquire uma estrutura cronológica enigmática sem perder o ritmo. Mas o seu trabalho foi ultrapassado, por exemplo, em Beuys onde a montagem é usada de forma original, misturando excertos de filmes a still photos também baralhados cronologicamente e com uma estrutura ramificada e imprevisível. Outra séria consideração para este prémio seria mais uma extraordinária fotografia de Acácio d’Almeida em Colo [5], onde por um jogo de luz e sombra cria uma atmosfera intimidante e pouco esperançosa de uma família a atravessar a crise económica portuguesa.

Que Colo é um filme que exige da sensibilidade dos espetadores, já o sabíamos. Mas julgávamos que o júri a tivesse. Enganámo-nos e uma grande obra foi injustamente ignorada. Tal como o ótimo trabalho de elenco em The Party [6] de Sally Potter ou a inovação na animação de Have a Nice Day de Liu Jian. É triste concluirmos esta edição de Berlinale dizendo que poderia haver mais corpo e alma neste palmarés.