Sábado, 20 Abril

Confissões em Veneza: a ditadura já não é o que era

Quem já se atreveu a enfrentar estas lides dos grandes festivais internacionais de cinema seguramente já se deparou com um dos factos mais irritantes do circuito: a ditadura da acreditação. Por esse mundo fora quanto maior for o festival maior é o numero de cores diferentes nas correntes a volta dos pescoços dos festivaleiros. Cannes, o ex líbris do circuito, é de longe o mais detalhado. Tem cartões azuis, cinzentos, amarelos, cor-de-rosa, cor-de-rosa com bolinha azul, cor-de-rosa com bolinha amarela, e suponho que em breve terá também alguns quadrados ou às listas. Toda esta panóplia serve para definir as hierarquias de prioridades de entrada nas sessões, decretando por associação quem é relevante e quem é mero excedente. Existe no entanto um caso em que esta ditadura não prima pelo perfecionismo, e, como reza a lei de Murphy, tinha de acontecer precisamente no único festival que me dá prioridade máxima, fazendo me sentir importante no curto caminho entre a sala de imprensa e a primeira sala de cinema, para rapidamente me fazer cair na cruel realidade. Em Veneza impera a lei do mais forte, ponto final. Ou para ser mais correto, do mais sorrateiro. As cores e as filas existem como mera ficção, já que na hora H entra tudo ao mesmo tempo, isto é, entra quem for mais rápido a saltar a fila. Maldita sorte, maldita ditadura.

Falando em ditaduras, em Veneza existe outra que assume novos contornos por estas bandas: a ditadura do cinema local. A quantidade de filmes Italianos em competição é descaradamente desproporcional ao resto do planeta, apesar do declínio notório do cinema italiano desde…enfim, sejamos simpáticos: décadas (com gigantescas exceções claro). Compreensível sem duvida, mas não nos esqueçamos que Cannes começou exatamente por essa razão (há vícios difíceis de matar).

Apesar de ser motivo de troça por parte do exército de críticos internacionais que estes dias por aqui deambulam, volta e meia aparece uma exceção. Ate ao momento aquela que parece mais próxima de seguir as pisadas de Sacro Gra, o documentário de Gianfranco Rosi vencedor do Leão de Ouro em 2013, é um pequeno e surpreendente filme em competição para o prémio Orizzonti: La vita obscena, do novato Renato di Maria. Desde a sua estreia que tem despertado acesas discussões, graças a obscenidade e coragem do jovem italiano, que se atreveu a embarcar por uma aventura de sexo, drogas e autodestruição, sem grandes limites. A reação ficou bem dividida em dois campos opostos, mas pelo menos não para de forçar o debate, o que em muitos casos foi o suficiente para um sinal simpático do júri.


La vita oscena

Ontem Veneza testemunhou também a estreia do novo filme de Quentin Dupieux, o musico/Dj francês mais conhecido por Mr Oizo, que em 2010 surpreendeu-nos a todos com uma passagem de sucesso para o cinema, com o êxito underground Rubber (Pneu). O seu novo filme chama-se Reality, mas o título dificilmente poderia ser mais enganador. Reality “reduz-se” a um pesadelo interminável em que o universo das diferentes personagens se confundem e misturam sem que seja possível deslumbrar um final feliz. Todo este surrealismo, regado por uma banda sonora composta por duas teclas de órgão repetidas até à exaustão, deixou um impacto notável desde a sua estreia, tanto a nível psicológico como físico, passando de imediato para um dos favoritos da multidão até ao momento.

Outra surpresa agradável foi 99 Homes do jovem norte-americano Ramin Bahrani, que depois de vencer tudo o que havia para ganhar em solo Americano, com filmes como Man push cart ou Chop shop, trouxe a Veneza a sua ultima reencarnação. Apesar de uma estrutura bastante convencional e com demasiada vontade de apelar às massas, o filme nunca perde o seu charme especial, focando a narrativa na experiencia de uma pequena família desalojada durante a crise do imobiliário em 2008. Pondo algumas falhas de lado, este é possivelmente o mais relevante e revelador filme sobre a crise financeira feito por Hollywood nos últimos anos, contando com performances de luxo de Andrew Garfield e Michael Shannon, que desempenham dois homens transformados em autenticos monstros por um sistema em modo de autodestruição.


99 Homes

Por último, falta assinalar que um dos mais aguardados filmes do ano, La raçon de la gloire, do frances Xavier Beauvois (um dos filhos prediletos do festival de Cannes) revelou-se como uma autentica fraude, gerando comentários desencorajadores que pouco ou nada inspiram a uma solitária presença nas exibições que restam.

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