Terça-feira, 23 Abril

Wes Craven, o homem que fez do terror a sua casa

 

Inventor do monstro dos sonhos que tirou o sono a muita gente, Wes Craven faleceu a 30 de agosto, aos 76 anos, na Califórnia. O C7nema aproveita para rememorar que nem só de A Nightmare on Elm Street (O Pesadelo em Elm Street), e Scream (Gritos), saga que brincava as convenções do terror, viveu a obra do realizador…

Foi aos 33 anos que Wes Craven escreveu, dirigiu e editou a sua primeira longa-metragem, The Last House on the Left (1972), provavelmente uma das obras de terror mais subvalorizadas nos anos 70 – ainda que hoje faça parte da história do género. A Última Casa à Esquerda, como foi traduzido no nosso país, fez da ambiguidade um ponto de partida para a redefinição dos arquétipos maniqueístas e a violência num vínculo perfeito na união das suas personagens. Foi um filme de vingança físico, porém, intensamente psicológico, influências que mais tarde foram precisas para a gestação do incontornável Texas Chainsaw Massacre (Massacre no Texas, de Tobe Hooper (o proclamado filme preferido de Craven), ou I Spit in Your Grave (Mulher Violada), de Meir Zarchi. Sem saber, Wes Craven “libertou” um género para os limites da própria perversão humana, uma liberdade que o Reino Unido apenas conheceu 20 anos depois, visto o filme ter sido banido pela sua extrema violência.

Três anos mais tarde, o cineasta decide usufruir dessa perversão adquirida num filme adulto, The Fireworks Woman onde, e sob o pseudónimo de Abe Snake, assina uma história de amor platónico cruzado com a imensidão da luxúria vivida por um amor proibida entre dois irmãos.

Ultraviolência

Sob o crescente impacto de O Massacre no Texas, surge The Hills Have Eyes (Os Olhos da Montanha, 1977 – foto abaixo), que uniria o freakshow sob tremendas doses de grafismo (e canibalismo), tudo requintado com a temática nuclear e os ecos desta. Craven exibiria um gosto refinado pelo trash nessa obra, vencedora do Prémio Internacional do Juri de Crítica do Festival Internacional de Cinema da Catalunha (STIGES), algo que viria dissipar-se no ano seguinte com o telefilme Stranger in our House, que tinha no protagonismo Linda Blair (que ainda vivia da fama anexada ao êxito de O Exorcista, de William Friedkin). Aqui, a atriz interpretava uma jovem que suspeitava atos de bruxaria por parte do seu primo que, porventura, passaria a viver com a sua família.

Em 1981, o terror chega à comunidade amish com Deadly Blessing (A Bênção do Anjo Negro), filme pelo qual foi descoberta a atriz Sharon Stone que, 11 anos mais tarde, viria a tornar-se mundialmente célebre pelo seu empenho de femme fatale em Instinto Fatal, de Paul Verhoeven. No ano a seguir, aventura-se nas adaptações de BD com Swamp Thing (Perigo no Pântano), editado pela DC Comics, uma alusão ao monstro do pântano de Lagoa Negra (O Monstro da Lagoa Negra, 1954). Foi um filme fracassado junto de público e crítica. 

 

 O reinado de Freddy Krueger

Seguiu-se o ano 1984, aquele que fora um dos seus períodos mais atarefados, onde fracassos foram compensados com improváveis sucessos. Enquanto Invitation to Hell (Convite para o Inferno) e a segunda parte de Os Olhos da Montanha não deslumbraram nas mais variadas frentes, eis que surge A Nightmare on Elm Street (O Pesadelo em Elm Street -foto abaixo), o filme que provou ser capaz de gerar um “monstro” tão assustador como Freddy Krueger, o assassino de crianças que executa as suas matanças através dos sonhos, interpretado com personalidade por Robert Englund.

Segundo Craven, Krueger foi baseado em particularidades verídicas, a sua sinistra figura havia sido observada pelo realizador nos seus verdes anos, um vizinho constantemente bêbado que o observava, enquanto o nome “Freddy” advinha do rapaz que o atormentava durante a sua infância. Traumas, que não prescritas e que reproduziria nesta obra que combinou o subgénero slasher com o horror psicológico, e por vezes gótico, “Os filmes de terror não criam medos. Liberta-os” é uma das frases de Craven que tanto adequa a esta sua criação.

De baixo orçamento, o filme conseguiu faturar mais de 100 milhões de dólares em todo o mundo e gerar um franchising robusto o suficiente para realçar a independente produtora New Line Cinema no mapa de Hollywood cerca de vinte anos antes de a trilogia O Senhor dos Anéis encher os seus cofres. Em relação às sequelas, Craven apenas esteve evolvido na produção do terceiro filme, em 1987, e na direção do sétimo em 1994. Segundo as más-línguas, ele sempre havia recusado dirigir as ditas continuações, chegando mesmo a repudiar o segundo filme (Pesadelo em Elm Street 2, de 1985). Em jeito de curiosidade, foi com A Nightmare on Elm Street que Johnny Depp encontrou a sua vocação no cinema, naquele que foi o seu primeiro e acidental papel. Segundo o ator, este fora selecionado para o elenco quando somente acompanhava a namorada para o casting.

Zombies e vampiros

Em 1985 cumpre o telefilme Chiller e realiza no ano seguinte episódios da série Disneyland e The Twilight Zone (neste último descobriu Bruce Willis) e o filme Deadly Friend, baseado no livro de Diana Henstell. Em 1988, inspira-se num livro não ficcional sobre vudu e concretiza The Serpent and the Rainbow (A Maldição dos Mortos-Vivos). No ano seguinte dirige Shocker (10,000 Volts de Terror), o qual tentava rivalizar com a sua própria criação, Freddy Krueger, agora detida nas mãos dos produtores da New Line Cinema, e ofereceu-se para realizar Beetlejuice: Os Fantasmas Divertem, projeto que caiu nas mãos de Tim Burton.

No início dos anos 90, tenta a sua sorte com o telefilme Nightvisions, a produção cinematográfica The People Under the Stairs (Prisioneiros da Cave), uma metafórica visão da discriminação racial nos EUA em pleno século XX e o misto de comédia e horror, Vampire in Brooklyn (Vampiro em Brooklyn – foto abaixo), com Eddie Murphy a renovar o seu estatuto de estrela. Antes disto, havia tentado um conceito autorreflexivo do género com New Nightmare (O Novo Pesadelo de Freddy Krueger), o regresso de Craven ao franchising que deserdou. Este filme-dentro-de-um-filme foi mal compreendido na sua época de estreia, tendo rendido muito abaixo esperado. Porém, serviu de ensaio para o que veio a seguir – Gritos, de 1996.

Gritos

Com Gritos, Wes Craven retomou, com colaboração com o argumentista Kevin Williamson, à sua análise crítica ao género e ao mesmo tempo desconstrui-lo. O resultado é um dos filmes mais astutos do seu tempo que constantemente salienta a posição do cinema de terror na sociedade contemporânea e na respectiva cultura pop (vale a pena relembrar o seu hilariante cameo como um funcionário do liceu de nome Freddy).

Um ano depois segue a sequela, que “brincou” com a sua estrutura de continuação, novamente desconstruindo o género e relançar-se no mesmo jogo anteriormente bem sucedido. Gritos 2 foi um portento, uma sequela musculada que fincou o realizador como um dos mais importantes maestros da sua geração. Contudo, não existe duas sem três, e o terceiro capítulo de um dos mais gritantes franchisings do terror viria a luz do dia no ano 2000. Mas, antes, Wes Craven havia apostado em Music of the Heart (Melodia do Coração), um musical com uma Meryl Streep nomeada ao Óscar. Voltando a Gritos 3, desta vez Williamson abandona o barco e no seu lugar instala-se Ehren Kruger. Novamente resultou na bilheteira, embora tenha sido mais mal recebido pelos críticos: os acérrimos fãs não conseguiram o “proteger” da má onda de críticas. Gritos 3 havia convertido naquilo que a própria saga parodiava, um inverosimilhante slasher movie rodeado de clichés.

Craven 2000

Depois de um período de ausência na realização, mas executado o cargo de produtor (Dracula 2000, por exemplo), Wes Craven concretiza em 2005 um duo, por um lado o “não muito rentável” Cursed: Amaldiçoados, onde voltaria a reunir-se com o argumentista Kevin Williamson para um tratamento algo reflexivo dos lobisomens no cinema. A imagem de Gritos já se encontrava longe e isso notou-se com a performance de Cursed, quer financeira, quer criativa.

E, do outro lado, eis que surge Red Eye, uma pequena lufada de ar fresco no seu conceito de cinema. Agora mais virado para o thriller de contornos hitchcockianos, Wes Craven dirige Rachel McAdams e Cillian Murphy numa ação praticamente toda decorrida dentro de um avião. Contudo, no terceiro ato o realizador solta-se e deixa perder um grande filme, para dar lugar a um exercício de estilo.

A partir deste momento seguiu-se a fixação do cineasta no papel de produtor, entre os quais em revisões dos seus clássicos por eventuais “talentos” do terror moderno. Ora fora Alexandre Aja no remake de The Hills Have Eyes (que por cá obteve o titulo de O Terror na Montanha) ou Dennis Iliadis na nova versão de The Last House on the Left, uma variação algo ignorada que não adquiriu impacto, mas que funcionou como uma homenagem aos anos de ouro e uma tentativa de “sujar” o cinema de terror de estúdio. Outras produções curiosas deste período fora Feast – O Bicho e The Breed.

Integrou o projeto coletivo, Paris, Je T’Aime, em 2006, com o segmento Pere-Lachaise, e quatro anos depois e sem êxito, tenta o slasher My Soul to Take (foto acima), que gerou mais gargalhadas involuntárias que supostamente terror. Por fim, em 2011, regressa ao universo Gritos, com um quarto filme que evidencia a pior das premonições: o encanto da franquia desaparecera. Este novo capítulo era, para todos os efeitos, uma revisão ao novos códigos do cinema de terror, com um agradável “piscar de olhos” aos reboots e as suas estruturas apelativas às novas gerações e teve boa aderência – embora menor que no restante da franquia. Mas, mais feliz, encontra-se a série televisiva Scream, produzida pelo próprio, sob o selo da MTV.

Para além do cinema, Wes Craven demonstrou os seus dotes de escritor com o seu livro The Fountain Society (terminado em 1999), que envolve clonagem, imortalidade e existencialismo.

 

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