Sexta-feira, 19 Abril

Claire Denis: “Tenho muita vontade de escrever sobre o que está a acontecer”

Em entrevista ao C7nema, a cineasta francesa que será homenageada no Visions du Réel espera que o mundo retome as suas atividades audiovisuais para filmar ‘The Stars At Noon

Menos conhecidos que os filmes de culto Beau travail (1999) e Trouble Every Day (2001), os documentários Vers Mathilde (2005), Jacques Rivette – Le veilleur (1994) e Man no run (1989), escolhidos pelo festival suíço Visions du Réel para uma homenagem a Claire Denis, são componentes essenciais de uma estética que transformou a realizadora parisiense de 73 anos num pilar sensorial do cinema contemporâneo.

Um pilar que é singularmente mais sólido na construção de um olhar humanista da alteridade, da relação com diferenças culturais e com as contradições do desejo. Assistente de realização de mestres como Wim Wenders (em Paris, Texas; As Asas do Desejo), Costa-Gavras (em Hanna K.) e Jim Jasmusch (Down by Law), no início de sua carreira, a cineasta não poderá ir a Nyon, a sede do evento, para receber o seu tributo: o VdR vai até ela… e a todos nós.

Este ano, a maratona documental europeia, agendada de 17 de abril a 2 de maio, vai acontecer online, no sítio https://www.visionsdureel.ch/. A obra de Claire será vista por lá, incluindo alguns trabalhos dela pelo terreno da ficção. A reverência a ela não veio por acaso. Em bíblias cinéfilas como a revista Cahiers du Cinéma, a diretora de 35 doses de rum (2008) e Nenette et Boni (Leopardo de Ouro no Festival de Locarno, em 1996) merece respeito não apenas pela contribuição que deu às atuais discussões sobre emancipação feminina – na sua forma libertária de representar as mulheres no ecrã – mas pelos debates sociais e raciais que abriu, em filmes de culto como Uma Mulher em África (2009). Mas até seus fãs mais ardorosos estranharam quando ela decidiu focar a sua atenção no espaço sideral e arriscar pelas veredas da ficção científica em High Life, um ensaio psicanalítico em forma de excursão pelas estrelas. Foi a sua longa-metragem mais recente e deu-lhe o prémio da crítica da Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci) no Festival de San Sebastián, em setembro de 2019. Na entrevista a seguir, ao C7nema, concedida por telemóvel, ela faz um balanço das suas pesquisas formais e relembra as experiências do passado.

O tributo do Visions Du Réel inclui algumas das suas ficções. O que há de documental nelas?

Quando se filma em locação, como eu faço muitas vezes, estás sempre aberto ao real, sobretudo porque há um processo de conhecer as pessoas. Até num filme de ficção científica filmad em estúdio, e ambientado no espaço, como é High Life, existe uma abertura para a realidade. Não por acaso,  levei para aquele ambiente de confinamento uma abordagem sobre a falta de liberdade a partir de um ponto de vista social, ao mostrar que são presos reunidos numa nave. E, ali, transformei aquela situação no palco para uma história de amor paterno. Eu tenho a Juliette Binoche ali comigo. Uma mulher linda…um rosto lindo a ser filmado… mas linda no sentido de que sabe compartilhar intimidade comigo no olhar, ao construir uma personagem. Intimidade não é privacidade. Logo, essa partilha não significa devassar o respeito. Com Isabelle Huppert foi assim também.

Falando dela, o festival suíço vai exibir um de seus trabalhos mais elogiados, Uma mulher em África, de 2009, indicado ao Leão de Ouro, na qual você filma Isabelle de um ângulo sem qualquer foco de vaidade, explorando uma vermelhidão no seu rosto. Vermelhidão que contrasta com o verde esmaecido das árvores ao redor dela e com o tom acastanhado do barro nos seus pés. Como se processa essa construção sensorial?

Pedi que ela ficasse sem maquilhagem, para que o vermelho nas suas bochechas ressaltasse, sobressaltando marcas sardentas e valorizando a cor de seu cabelo, devolvendo.lhe um aspecto de meninice. Essa questão da sensorialidade nos meus filmes não é algo que vem de um esforço conceitual, é algo que faço, quase ingenuamente, a partir do contacto com os corpos, da perceção dos rostos dos atores, das pessoas com quem me cruzo. Agnès Godard, fotógrafa com quem eu trabalhei muitas vezes e que se afina bem comigo, na sua percepção estética, observa, como eu, os rostos do elenco como uma paisagem. A questão é explorar o relevo que está ali e viver essa exploração, essa aproximação.

O que você procura de mais exótico ou de mais comum num rosto?

O que busco é o extraordinário que existe em cada expressão, ou seja, tentar entender as emoções por trás de cada gesto, de cada olhar. O que move um set é a dimensão miraculosa de sonho que o cinema tem. Mas, na prática de concretização de um filme, você busca algo que é palpável. Tenho, por exemplo, curiosidade em saber como as pessoas se comportam num ambiente de silêncio absoluto, de solidão, e levei essa curiosidade para o meu último filme, High Life. Mas tentei fugir de algo na ficção científica, sobretudo a americana, que me assusta, que é o senso do militarismo. Preferi mostrar a angústia do confinamento e o amor que brota ali, numa relação da personagem de Robert Pattinson com uma filha. É o espaço da experiência de amar.

Num depoimento seu ao diretor do New York Film Festival, o curador e cineasta Kent Jones, você recordoua sua relação profissional com a realizadora belga Chantal Akerman e usa a palavra “raiva” para se referir ao sentimento que a movia nos seus filmes. Existe essa mesma “raiva” na sua obra?

Conversaram comigo há pouco tempo e perguntaram-me se eu sinto muito stress nas filmagens. Lembrei-me da Chantal. Ela não se sentia stressada e, sim, enraivecida, com a dificuldade de conseguir financiamento, com as coisas que não andavam. Entendo essa sensação e compartilho dela, mas de uma forma diferente do que as pessoas entendem por “raiva”. É um sentimento parecido com a sensação que você sente quando precisa subir uma montanha e ir até ao cume. “Raiva” é um tipo de desejo que me consome e que me leva a não querer perder um momento que eu esteja a viver na rodagem de um filme, num corpo a corpo com um rosto que vai se revelar para mim como numa paisagem.

Lembro-me de uma vez em que uma velha redação da Cahiers du Cinéma propôs uma grande entrevista com várias realizadoras e realizadores e estávamos lá, nessa conversa, num café, a Chantal e eu. Ela estava furiosa com os rumos que a revista, no meio de uma fase difícil de mudança, enfrentava. Aí, bradou: “Eu vou comprar a ‘Cahiers…’ e mudar as coisas”. Ouvi aquilo, saí pra fumar e fui abordada por um colega, que também participava na entrevista. Ele falou que a Chantal parecia furiosa. Eu, a fumar, com calma… com a calma de quem a conhecia… disse: “Ela não tem dinheiro para isso. Não vai comprar a ‘Cahiers…’. Mas não é raiva. Ela sentia as mudanças, sofrendo, elaborando.

Robert Pattinson e Claire Denis

E como fica o seu novo projeto, The Stars At Noon, baseado no romance de Denis Johnson sobre uma incursão à Nicarágua nos anos 1980?

Temos que esperar que as atividades do mundo regressem à normalidade e aguardar que a circulação das pessoas volte ao normal, em segurança. Temos já o financiamento e já escolhi as locações. Fechei com Pattinson, que precisa terminar os seus compromissos com a Warner Bros., com o “Batman”, hoje parado. E já tenho uma atriz, a Margareth Qualley. O roteiro já existe. Agora é ver como ficam os cronogramas.

Estamos a viver uma experiência de pandemia global. Como o cinema pode ajudar?

Tenho muita vontade de escrever um roteiro sobre o que está a acontecer, mas jamais seria sobre a pandemia em si. Isso muita gente deve fazer. O que quero é entender o que fica, estudar como as pessoas vão mudar. Como já estão a mudar.

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