Sexta-feira, 3 Maio

Los Conductos: premiado na Berlinale revela uma Colômbia de lutas

‘Los Conductos’, prémio de melhor filme em estreia na Berlinale, é exibido no IndieLisboa

Destinada a espalhar suas vozes mais inquietas pelo planisfério cinéfilo como um pleito de afirmação nacional e como um gesto  de denúncia contra invisibilidades institucionalizadas pelo seu Estado, a Colômbia vem surgindo no cenário dos grandes festivais com narrativas de invenção como “La Playa D. C.” (2012), “O Abraço da Serpente” (2015), “Pássaros de Verão” (2018) e, agora, “Los Conductos», uma coprodução com o Brasil que arrabatou a Berlinale.

Classificado no boca a boca do Festival de Berlim com adjetivos elogiosos como “devastador” e “impressionante”, a saga de um jovem, Pinky, contra opressões morais e existenciais, foi exibida na seção Encounter, conquistando o prémio de melhor filme em estreia no festival alemão. Com a direção do colombiano Camilo Restrepo (de curtas como “Cilaos“), a longa-metragem acompanha a jornada de Pinky em busca da liberdade, numa trajetória mediada por fantasmas. Na entrevista a seguir, Restrepo faz um balanço das escolhas estéticas que tiram a sua trama dos rótulos menos requintados de «cinema político», afirmando-se pela sua pluralidade.

Qual (e como) é a Colômbia que você escolheu demarcar e representar na narrativa, ou seja, que cartografia você escolheu demarcar na criação do universo de Pinky? E o quanto essa Colômbia se reporta à noção (por vezes redutora) de exclusão que usamos para designar um território tão plural como a América Latina como um organismo só?

O filme foi rodado em Medellín, a cidade onde eu nasci e onde conheci Pinky, o protagonista. Trata-se de uma cidade com uma imensa complexidade social, cultural, histórica, económica e política. Durante o apogeu do narcotráfico, Medellín tornou-se um centro de poder à escala mundial. Para dizê-lo nos termos de “exclusão, periferia e centro”, nesse período Medellín deixou de ser uma pequena cidade marginal do Cone sul para se converter numa plataforma desde onde operava o capitalismo mais selvagem, à escala planetária. Desde então, a cidade, e talvez todo o país, passa por um processo de desenvolvimento em diferentes velocidades: a hipervelocidade imposta pelos mercados internacionais e pelas novas tecnologias enfrentando a inércia de um grande número de condições sociais. Estes ritmos diferentes impõem, naturalmente, importantes divisões entre as classes sociais, entre os modos de pensar, entre as possibilidades de futuro dos cidadãos. A minha intenção foi tentar compor uma obra que perpassasse alguns desses estratos que compõem a cidade e o país. Quero dizer então que não entendo a cidade – nem o país- como uma unidade, mas como um conjunto de diferenças que convergem num tempo e num espaço. Talvez essa seja uma característica que se aplique a vários espaços do continente, onde o deslocamento é mais forte que a unidade.


Camilo Restrepo

O quanto a pesquisa narrativa das suas curtas-metragens, sobretudo “Cilaos”, pesa na construção narrativa de “Los Conductos“?

Desde a minha primeira curta-metragem, Tropic Pocket (2011), adotei uma narrativa multidirecional. Foi uma decisão plenamente consciente ao me dar conta de como diferentes grupos haviam gerado conteúdos audiovisuais com o espírito de veicular ideologias colonizadoras na região isolada do Darién (Colômbia). A manipulação pela imagem pareceu-me, desde o início, um tema importante para tratar. «Los Conductos» continua esse interesse pelos mecanismos de manipulação. Voltando à primeira curta-metragem desde a qual se construiu o meu método narrativo. No Tropic Pocket, considerei que o cinema devia operar no confronto de olhares diferentes da realidade. O meu trabalho concentra-se desde então em criar um terreno no qual se cruzam diferentes estratos de realidade e de ficção, opondo-se completamente ao cinema argumentativo e ao relato clássico com um arco narrativo do princípio ao fim.

Qual é dimensão do conflito existencial que demarca o espaço de violência do filme?

Alegra-me que assinale a id4ia de conflito existencial, além de um conflito contextual (enquadrado nas fronteiras geográficas e históricas da Colômbia). Pinky, a personagem principal de «Los Condutos», é guiado por uma preocupação moral: como encontrar o ponto de vista ideal do qual você pode saber se algo é mau ou bom? Esta preocupação é claramente enunciada, no final do filme, onde se fala de um diabo que, um dia, elevou um jovem acima do mundo para mostrar-lhe a realidade nua da sociedade, revelando assim todas as hipocrisias. O jovem entendeu que via o mundo como somente Deus e o Diabo podiam vê-lo, distinguindo plenamente o Bem do Mal. Mas também entendeu que esse lugar não é o de nenhum homem. Como homens, só temos uma visão muito parcial da realidade, e é de acordo com essa escassa visão que devemos agir. Guiar os nossos atos para o que consideramos bom ou mau é aquilo a que chamamos livre arbítrio. A violência não é nada mais do que o terreno onde se ilustra melhor o dilema que propõe a ideia de liberdade para se conduzir a si mesmo.

Qual é a dimensão de heroísmo (ou anti-heroísmo) que Pinky encarna e o quanto esse personagem afirma ou refuta uma tradição de representação heroíca (ou anti-heroica) do cinema latino-americano?

Em “Los Condustos“, a personagem de Pinky (como seu companheiro, Desquite) encarna, de certa maneira, a figura mítica do ‘bom bandido’: um homem que se ergue contra a injustiça sem saber diferenciar bem e mal. São marginais que decidem atacar um poder que os oprime. Mas, sem ideais claros, eles correm o risco de ser tão injustos como aqueles que são injustos com eles. Devo esclarecer que a figura de Desquite evoca uma personagem real, um camponês que, durante os anos 1950, empunhou as armas num dos períodos mais violentos da história colombiana. Uma espécie de «guerrilheiro fora de hora», porque naquela época faltava ainda a consciência de luta de classes que mais tarde forjou a guerrilha latino-americana. Os Canganceiros e os Bandoleiros do Peru, são outros exemplos dessa figura no continente.

Como foi a busca pela “luz” que orienta a fotografia de Guillaume Mazloum? O quanto essa fotografia afirma (ou nega) uma certa influência de realismo inerente ao cinema da América Latina?

“Los Conductos” é nossa terceira colaboração juntos. Desde sempre, o nosso objetivo tem sido nos afastarmos do efeito realista da fotografia. Guillaume e eu estamos convencidos de que o trabalho do cinema consiste em dar uma luz própria às coisas que nos rodeiam. Uma luz que nos permite considerá-las como se se apresentassem diante de nossos olhos pela primeira vez. É o que me parece ter feito magnificamente a pintura nas naturezas mortas. Pensemos, por exemplo, nas obras de Morandi. Quero então dizer que a pintura é talvez a maior influência de nossa fotografia, e nesse sentido nosso trabalho explora as possibilidades criativas da fotografia, além de suas possibilidades documentais.

Qual é a dimensão política que norteia uma narrativa anfíbia entre alucinação, realismo e reflexão sobre um país que transpira as inquietações gerais do continente?

Não há nenhuma dimensão política no sentido em que se pode entender essa palavra, tão citada que já nem sabemos o que quer dizer. Se você entender o propósito de fazer política como uma construção intelectual que aponta para uma falha do sistema de governo, “Los Conductos” não é um filme político, pois não tem um argumento direto. Quero dizer que não tem um só argumento, que não tem uma denúncia explícita, que não é um filme de grandes discursos, nem de ideologias, nem de partidos políticos, nem de slogans sociais. É precisamente a pluralidade de narrativas – de estilos, de discursos – que essa longa reúne, o que a diferencia dos filmes que classicamente definimos dentro do espectro do cinema político. Filmes nos quais o arco narrativo leva o espectador a uma conclusão clara e inequívoca do que o cineasta quer afirmar da realidade e da situação sociopolítica de um contexto determinado. Há uma vontade de afirmação ideológica nesses filmes que não existe em “Los Conductos”. E essa perda da conclusão clara e inequívoca na construção do relato do filme é uma interrogação intelectual sobre o poder que atribuímos ao cinema político como representante da realidade de nossos países. Quer dizer que, formalmente, desde sua construção, “Los Conductos” ergue-se contra as visões unidirecionais que, mais do que mostrar a realidade de sociedades tão complexas como as nossas, estigmatizam essas mesmas sociedades. “Los Conductos” é mais um filme crítico do que político. Tomando a palavra crítica como uma postura de distanciamento frente a um objeto de estudo, com o espírito de dispor os elementos que compõem a complexidade da sociedade em uma espécie de plano ou mesa de trabalho. E uma vez colocados ali (cada elemento desatado do outro, como se os nós complexos que os atavam na realidade se tivessem soltado), o filme propõe uma visão, e não um argumento nem uma denúncia.

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