Segunda-feira, 29 Abril

Sara Silveira: a verdade (do cinema) está lá fora… com as potências do Brasil no olhar

Entre os 19 filmes de ADN brasileiro escalados pela 70ª Berlinale, que começa nesta quinta-feira, há uma longa-metragem em competição pelo Urso de Ouro, Todos os Mortos, com direção de Caetano Gotardo e Marco Dutra, delineada por uma artesã da coprodução internacional: Sara Silveira.

Ativa há 23 anos, a produtora tem no seu currículo obras que passaram por Veneza (Girimunho), por Toronto (Era Uma Vez, Eu, Verónica), por Locarno (As Boas Maneiras, Os Famosos e os Duendes da Morte), por Cannes (Cinema, Aspirinas e Urubus, Trabalhar Cansa) e pela própria capital alemã, como Mãe só há uma (2016). Todo esse repertório invejável de títulos foi delineado com um equilíbrio fino de paixão e reflexão, que embalou a estreia de narrativas que fizeram História na América Latina como Bicho de 7 Cabeças (2000) e Durval Discos (2002). Respeitada pela sua aposta em cineastas estreantes e também pela sua habilidade de desbravar fronteiras idiomáticas e legislativas, com traquejo exemplar na combinação de recursos de terras estrangeiras, ela poderá sair de Berlim com o prémio mais cobiçado da maratona cinéfila alemã com uma produção que afirma as múltiplas potências femininas e a luta contra o racismo.

Abordando a união feminina numa perspetiva histórica, Todos os Mortos tem Mawusi Tulani, Clarissa Kiste, Carolina Bianchi, Gilda Nomacce e Andréa Marquee no elenco. O seu enredo ocorre em São Paulo de 1899, onde os fantasmas do passado ainda caminham entre os vivos, assombrando as mulheres da família Soares. Elas são antigas proprietárias de terra, que tentam agarrar-se ao que resta dos seus privilégios. Para Iná Nascimento (papel de Mawusi), que viveu durante muito tempo escravizada, a luta para reunir os seus entes queridos em um mundo hostil a conduz a um questionamento das suas próprias vontades. Entre o passado conturbado do Brasil e o seu presente fraturado, cheio de intolerância, estas mulheres tentam construir um futuro próprio.

Na entrevista a seguir, Sara explica como investir na construção do olhar a partir da conjugação de diferentes modos de se conjugar os verbos de ação do cinema.

Como funciona o esquema de coprodução com a França para um projeto como Todos os Mortos e como avalia, hoje, os mecanismos de troca do Brasil com a Europa?

Temos o acordo latino-americano de 1979, feito em Caracas, na Venezuela. Esse acordo ainda existe para os países da América Latina, para que não tenha acordos específicos bilaterais. Com ele podemos produzir com vários outros países pelo continente. Com a Europa, cada país possui o seu acordo, dependendo da nação com a qual vamos trabalhar. Por exemplo, temos outro filme que tem coprodução com a Polónia. Não temos um acordo bilateral e mesmo assim estamos a trabalhar em regime de coprodução. O esquema de coprodução com a França é bastante facilitado por existir um acordo para que possamos gerir essas coproduções.

As Boas Maneiras

A França sempre teve um olhar para o estrangeiro e é um dos países mais abertos para coproduzir com o Brasil. Ser sustentado por um acordo sempre facilita e reconhece o regime de coprodução que podemos ter com esse país. As coproduções são “hiper” bem-vindas e os mecanismos de troca seguem os acordos com os países. Quando não existe acordo bilateral, às vezes, temos algum acordo para que possa conduzir o projeto não tão fortemente.

Você é parceira de longa data de Março Dutra e de Caetano. O que nota de evolução e de amadurecimento na estética deles?

É uma parceria desde o início das nossas carreiras. Marco Dutra, Caetano Gotardo, Juliana Rojas, é o trio da Filmes do Caixote. Tenho uma relação muito estreita com a Dezenove e, juntos, seguimos uma carreira na qual os nossos realizadores chegaram na competição da Berlinale. Para um trabalho de lançar cineastas ter solidez é muito importante que ele comece desde o primeiro filme dos artistas. Nós temos feito os filmes juntos, ora com duplas diferentes, ora separadamente. Esse trabalho possui uma evolução grande. Fiz com Caetano com O Que Se Move, com a Juliana e o Marco com Trabalhar Cansa e As Boas Maneiras. Agora com Caetano e Marco, o Todos os Mortos ratifica uma evolução. É claro que esses três talentos evoluíram nas suas profissões. Nós passamos pelo género fantástico: é um cinema que nos interessa, e que aborda a inclusão social. Só tenho a felicitar os passos percorridos por esses três realizadores que nos levam à disputa pelo Urso de Ouro, certamente mostrando uma real e forte evolução na carreira do trio.

Como começou o seu histórico de trânsito pelos grandes festivais do mundo?

O meu histórico com grandes festivais começou há muitos anos. Sempre fiz trabalhos nos mercados para tentar ser conhecida, para tentar implementar os nossos projetos e, só de Cannes, tenho quase 20 anos de mercado. Se juntar todos os mercados, vou para quase 30 anos de carreira. Desde o início da Dezenove o nosso foco foi internacional. Sempre foram primeiros filmes, tentando descobrir talentos e lançá-los no mercado cinematográfico. A Dezenove prioriza os filmes mais reflexivos, filmes com preocupação social. A diversidade presente no Brasil serve de atrativo. Com a política audiovisual que tivemos nos últimos anos o resultado foi extremamente positivo. Vários produtores e cineastas conquistaram o seu lugar no cenário internacional, porque ficamos trabalhando esses anos todos mostrando as nossas atividades, mostrando para o mundo as nossas potencialidades, as nossas diversidades, a nossa força para com o cinema.

O cinema brasileiro tem respondido enormemente na cena internacional justamente pelo trabalho que temos feito ao longo desses anos nos mercados de Cannes, de Berlim, Roterdão, San Sebastián e em todos os demais festivais. Com você fazendo-se conhecido e respeitado, o resultado sempre vem. Aí vai cair na coprodução com um trabalho incessante dessa busca internacional para que tenhamos aportes financeiros e parcerias para fortificar nossos filmes.

O quanto à sua parceria de início de carreira com o mítico Carlos Reichenbach (1945-2012), com quem fez obras de culto como Garotas do ABC (2003), delineou a linha estética da sua obra como produtora?

Carlão é uma dádiva de Deus. Deus me deu o Carlão. Ou foram as energias positivas… ou todos os Deuses do mundo deram-me o Carlão. Ele, além de um dos meus melhores amigos, é o meu parceiro saudoso. Com ele, pude aprender tudo sobre cinema, aprendi a ser solidária, a dividir um filme com a equipa, aprendi a fazer orçamentos. O meu mestre para o resto da vida, o meu parceiro, o meu amigo, o meu homem de alma feminina. A sua família é a minha família do coração. Cheguei até onde cheguei graças aos ensinamentos do Mestre. Sem ele não saberia onde estaria, mas com ele estou a levar o cinema brasileiro para o mundo.

Os Famosos e os Duendes da Morte

Que outros filmes tem demarcados para 2020/2021?

Estamos com alguns projetos novos. Juliana Rojas começa a sua produção de um filme chamado Cidade; Campo, que deverá ser rodado em junho deste ano. Simultaneamente estamos em pós-produção do filme O Diário de Viagem, de Paula Kim, um primeiro filme que está sendo preparado para os festivais deste ano. Temos um filme filmado no Vietname, chamado Os Caminhos de meu Pai, do realizador Maurício Ozark, também um primeiro filme. Foi totalmente rodado nesse país, mas, curiosamente, é um filme brasileiro. Estamos em plena montagem almejando os festivais ao longo do ano.

Ainda tem mais um. Uma produção do saudoso Chico Teixeira, que se foi nesse último mês de dezembro. Marcelo Gomes será encarregado de dirigir o filme que ele nos deixou encomendado para fazer. Juntos com Lili Bandeira, eu e Marcelo Gomes vamos apropriar essa ideia e produzir esse filme, esperando rodar até o final do ano. O Clube dos Anjos, de Angelo Defanti, também é um primeiro filme que está pronto e sendo submetido a festivais para dar início a sua carreira internacional. É um projeto com a Sobretudo Produções. É uma coprodução com Portugal.

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