Quinta-feira, 25 Abril

“Desalma” promete surpreender a Berlinale com a miscelânea cultural do Brasil

O Festival de Berlim arranca no dia 20 de fevereiro

No limite ténue que segrega o Sagrado do Profano, pelas vias (por vezes tortas) do exercício da fé, “Desalma” vai flanar pelo Zoo Palast, uma das mais sumptuosas salas da capital alemã, levando ao Festival de Berlim, um olhar com toques sobrenaturais sobre os costumes (na margem do mistério) do interior do Brasil. 

Produção do canal de streaming Globoplay, onde estreia ainda este ano, a trama escrita pela romancista Ana Paula Maia (de “Carvão Animal“) é um dos projetos selecionados para o Market Screenings da Berlinale Series, a ala de dramaturgia para web e TV do festival germânico. Com exibição no Festival de Berlim, paralela à disputa pelo Urso de Ouro, agendada para 25 de fevereiro, a série ambienta-se na pequena Brígida, cidade do Sul brasileiro que parece parada no tempo, no meio da sua população de imigrantes ucranianos. No roteiro de Ana Paula, fenómenos sobrenaturais assombram a população ao longo de décadas, enquanto rituais de bruxaria prometem trazer de volta ao mundo dos vivos almas de pessoas que já se foram. Quem assina a direção artística é Carlos Manga Jr., responsável por “Aruanas” e por “Se Eu Fechar os Olhos Agora”, minissérie nomeada ao Emmy Internacional 2019. Na entrevista a seguir, Manga fala sobre o desenho estético de “Unsoul”, título internacional dessa viagem ao inusitado, que tem Cassia Kis, Maria Ribeiro e Cláudia Abreu no elenco.

Qual é o Brasil de Brígida e o quanto essa cidade reflete o misticismo brasileiro?

O Brasil de Brígida é um Brasil da mistura, de mesclas. É o Brasil que o brasileiro não conhece, mas perpetua a mistura. A autora Ana Paula Maia pesquisou sobre os ucranianos no Brasil, no Paraná. A gente sabe que toda a Região Sul possui colónias de europeus. Nós não sabíamos que a maior comunidade de ucranianos fora da Ucrânia é no território paranaense. Quando ela veio com a pesquisa, entendemos que, nessa colónia, as gerações mais antigas falam pouco de português. Alguns nem falam. E lá velhos costumes continuam. Uma coisa interessante é a mistura das tradições ucranianas celebradas pelos filhos de imigrantes nascidos no Brasil. Essa geração já traz uma mistura. Brígida é uma cidade fictícia como todo o universo de Ana Paula Maia. É uma cidade como outras no extremo Sul do Brasil que fomos usar como locação. São cidades paradas no tempo, cujos filhos saem para estudar fora e voltam. Elas possuem um olhar que se reflete na arquitetura, no seu comportamento e no seu ritmo. Isso faz com que elas tenham vida própria em todos os sentidos, uma musicalidade e uma dinâmica própria. Isso traz a ela uma temporalidade singular e é isso que queríamos. Brígida é atemporal, mesmo que a história seja contada em duas linhas de tempo. Pouca coisa muda, mesmo com a tecnologia chegando de um modo mais vagaroso nessas cidades. Brígida tem uma dinâmica própria, onde o tempo se faz presente. Talvez a Ucrânia seja, junto com a Romênia, um dos países de maior dualidade religiosa. Tem o catolicismo e tem o lado profano. Isso, na série, mistura-se com a questão mística do Brasil.

Como é desafiar o espaço do sobrenatural na teledramaturgia brasileira? Qual é o lugar para o medo e o assombro na série?

O desafio é grande, pois nós não estamos acostumados a fazer género na teledramaturgia ou na dramaturgia brasileira. O “Desalma”, por exemplo, é feito para o streaming, para o Globoplay. Entra, assim, para esse novo universo que está dominando o mundo, que são as plataformas digitais. Isto traz desafios também. Um deles é esse subgénero que chamo de drama sobrenatural. O que me atrai, em primeiro lugar, no universo da Ana Paula Maia é o drama humano, a crueldade e a brutalidade. Tem um lado de Campbell que diz que “na natureza a crueldade é implacável porque simplesmente é assim”. Isso faz com que você respeite a natureza quando acontece uma brutalidade entre os animais, porque simplesmente é assim. Da mesma forma, a Ana cria o Universo dela sem julgamento, e isso me interessa muito. Na trama, a nossa não aceitação da perda traz uma atmosfera angustiante, que puxa o sobrenatural à tona. O desafio é como explorar isso? Como traduzi-lo tecnicamente? Tudo isso exigiu meses de estudo para chegar a um conceito. E arriscar.

O que Ana Paula Maia, com o seu universo de brutalidades e de afetos, aporta de novo e de vivo na nossa dramaturgia?

O que a Ana Paula traz de novo é não ser uma autora naturalista. Ela cria mundos. Tendo como um dos meus heróis (o realizador polonês) Krzysztof Kieslowski, sou um diretor que precisa trazer essa coisa do olhar quase lúdico e melancólico do Leste Europeu, capaz de retratar verdades humanas. Isso misturado com mundos e universos criados é o que me atrai, para sair do falso naturalismo e entrar num processo de um mundo próprio para contar verdades humanas.

A sua obra como realizador é pontuada por andanças, sobretudo por espaços intimistas como o de “Se Eu Fechar Os Olhos”. Qual é o lugar de descoberta a que “Desalma” te leva? O que há ali de liberdade para a criação de uma linguagem como realizador?

“Se Eu Fechar Os Olhos” já tinha um pouco da minha característica como realizador. Cada um possui a sua assinatura. Tenho essa questão de trabalhar com o tempo, com o subtexto mais forte que o texto, com multiplicidade e profundidade, trabalhar com o diálogo entre o silêncio e a música. “Desalma” leva isso a outro patamar: o desafio de criar um universo próprio. Eu e a Ana Paula Maia conversamos muito sobre como criar esse universo e eu, obviamente, acabo colocando muitas das minhas características. Penso que, por isso, a gente se identifica muito. Eu como diretor me identifico com a mão de autora dela e vice-versa. Juntos vamos mergulhando esse imenso bosque de Brígida na ficção para criar um mundo próprio para “Desalma”. Dentro desse mundo tudo precisa fazer sentido para que a audiência possa entender o sentimento que estamos falando.

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