Sábado, 20 Abril

Jovens Polacas: segregação e sexismo na alcova do tempo

Baseado em livro icónico, Jovens Polacas devassa a violência contra mulheres judias no Rio de Janeiro no início do século XX

Pouco se retrata as tradições judaicas no cinema brasileiro e menos ainda se fala das práticas de exclusão sofridas pelos judeus no périplo história de formação do Brasil republicano que, nos seus anos iniciais, foi palco de uma saga marcada pela segregação e exploração de jovens mulheres vindas do Leste Europeu, criadas sob as tradições de uma cultura assolada pela diaspora.

Essa saga ganha forma de filme em Jovens polacas, que estreia no dia 27 de fevereiro com fôlego para mobilizar plateias pelo seu recorte revelador. Festivais na Hungria, na Grécia e no Bangladesh exibiram a longa-metragem, com fervorosa reação dos espectadores. O seu título é homónimo ao livro de Esther Largman, considerado uma das mais respeitadas pesquisas sobre fluxos migratórios femininos do Velho MUndo para a América do Sul.

Disputado por uma série de cineastas desde sua publicação, em 1992, o ensaio investigativo de Esther chega ao cinema sob a direção de Alex Levy-Heller, realizador do documentário O relógio do meu avô (sobre memórias do Holocausto). O cineasta passa em revista nesta produção de baixo orçamento, mas de delicado acabamento, uma outra diáspora, a das judias que chegaram ao Brasil com promessas de trabalho e acabaram transformadas em “garotas de programa”. Uma lenda do humor está no elenco: a veterana atriz Berta Loran, que interpreta Dona Sarita, fonte dos factos que passaram com as ditas “polaquinhas” do Rio Antigo.

O prestígio internacional do livro de Esther, sobretudo no ambiente universitário e entre as associações judaicas, faz do projeto um dos filmes nacionais mais aguardados de 2020. Na trama filmada por Levy-Heller, Ricardo, um jovem jornalista vivido por Emilio Orciollo Netto, realiza uma pesquisa para a sua tese de doutorado sobre as ditas “escravas brancas”. Conhecidas como “polacas”, essas mulheres judias do Leste Europeu vinham para cá, muitas vezes, casadas com algum Don Juan profissional, cujo dom era seduzir jovens com ilusões de romantismo e de um futuro próspero em solo americano. Ao chegar aqui, elas se descobriam enganadas, dando-se conta de que os supostos maridos eram na verdade “caftens” (cafetões/proxenetas) que as traficavam para a prostituição. Ao ser entrevistada por Ricardo, a Sra. Mira (papel da veterana atriz e encenadora de teatro Jacqueline Laurence) revela com detalhes a vida e rotina da sua mãe, uma das “polacas”, e, dessa maneira, faz as pazes com o seu obscuro passado. Branca Messina, Alessandra Verney e Lorena Castanheira estão entre os destaques do elenco, que inclui ainda um mito do cinema brasileiro, Flavio Migliaccio (o eterno Tio Maneco), no papel de seu Abraão.

Na entrevista a seguir, Levy-Heller esquadrinha esse pretétito imperfeito do Rio de Janeiro.

 

Qual é o Rio de Janeiro que o seu filme retrata e o quanto dele ainda se preserva no Brasil?

Estamos contando uma história que se passa entre os anos 1920 e 30, no Rio de Janeiro, na Região do Mangue, que abrange o Centro, a Vila Mimosa, locais que foram um reduto da boémia carioca naqueles tempos. A luz elétrica chegava aos poucos na cidade. Os casarões ou pensões das Polacas eram frequentados por toda a sociedade, das classes mais baixas à elite, com artistas e politicos lá. Havia uma profusão de etnias: imigrantes europeus, turcos, sírios, judeus e libaneses partilhavam o fervilhar do Rio de Janeiro. Nesse meio estavam as prostitutas judias, as Polacas, que, de certa forma, contribuíram para a História da cidade. Hoje, o Rio de Janeiro é outro. A efervescência da cidade mudou de local, as Polacas não existem mais e muito menos aquela sensação de ebulição. Houve uma tentativa de reviver a Lapa nos últimos anos, mas não creio que deu certo.

Como foi a engenharia de reconstituição histórica do longa e de que maneira a pesquisa apresentou a uma arquitetura hoje desmanchada?

Não é fácil filmar no Rio de Janeiro e mais difícil ainda é tentar retratar o Rio do início do século XX quando o orçamento do filme é escasso. A pesquisa levou-nos a locais no Centro da cidade e a adjacências onde circulavam os imigrantes, entre eles, as Polacas. Pouco foi preservado. Fizemos um esforço homérico para encontrar as locações para as filmagens que ainda retratassem o Rio antigo, sem interferências modernas. Conseguimos filmar num casarão na Vila Mimosa e recriamos nele a pensão das Polacas, graças a um trabalho primoroso da equipe de arte. A sinagoga construída pelas Polacas não existe mais e o cemitério das Polacas, em Inhaúma, onde tivemos autorização para filmar, estava abandonado até que, felizmente, foi tombado pela prefeitura como Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro.

Qual é a representação do feminino que o filme traz?

Houve muito cuidado e respeito ao retratar as Polacas no filme. Eram mulheres judias do Leste Europeu, exploradas no meretrício e renegadas pela própria comunidade judaica no Brasil. Por anos, elas ficaram esquecidas e o próprio cemitério delas foi abandonado. Porém, no imaginário carioca, elas simbolizavam ainda um ideal de mulheres bonitas, sedutoras e exóticas. No filme, eu propus um conceito mais lúdico para essas mulheres. Busquei inspiração em obras de arte de Matisse, Lebasque, Ludwig Kirchner, Jan Saudek e Henry Asencio. São artistas que tratam o feminino de forma poética. Então, ao longo do filme, há referências a esses artistas na forma como recriamos os quadros e na representação das Polacas.

Qual é o espaço para a representação das tradições judaicas no cinema feito no Brasil?

Acho que eu sou um dos poucos diretores judeus no Brasil que trata de temas judaicos no cinema brasileiro. Não que eu faça apenas filmes com essa temática. O meu primeiro filme, o documentário O Relógio do Meu Avô, foi realizado em 2012, quase 70 anos após a Segunda Guerra e, até então, não havia um filme brasileiro sobre sobreviventes do Holocausto no Brasil como o meu – fora Um Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut, mas que não trata diretamente sobre o assunto. Existe espaço no cinema brasileiro para todos os tipos de filmes, porém, o cinema judaico brasileiro é quase inexistente. Muitas vezes, a figura do judeu e as tradições judaicas são representadas de forma estereotipada, tanto na TV como no cinema. Não raramente com muito preconceito e falta de informação. Há muitas histórias judaicas no Brasil a serem contadas. Histórias que se fundem com a própria construção do país. Entre os meus próximos projetos estão O Mercador da Amazónia, que trata de judeus mercadores de borracha na Amazónia, e O Golem, no campo fantástico. É um filme sobre a figura do folclore judaico que inspirou Frankenstein, de Mary Shelley.

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