Terça-feira, 23 Abril

Daniela Thomas e ‘Olhos de água’: índios na vazante da interseção civilizatória

Na entrevista a seguir, Daniela fala sobre sua aproximação ao universo dos Kalapalos e sobre a construção da sua estética.

 

Híbrido de línguas, o título do novo exercício de investigação e inquietação da diretora artística e cineasta Daniela Thomas – Tuã Ingügu (Olhos D’Água) – já sugere confluências, conexões e distenções. Garimpo existencial onde as pepitas mais preciosas são o sorrisso de todo o dia de um povo afeiçoado às leis da Natureza, o território dos índios Kalapalo é o ponto focal da investigação feita pela realizadora de Vazante (2017) e de O Banquete (2018) acerca de uma cultura na conexão com a riqueza fluvial que alimenta seus habitantes. Os rios dos indígenas são retratados em analogia a rios poluídos das metrópoles urbanizadas de um Brasil distanciado dos códigos da floresta. Este poema em forma de filme, potencializado por todo o apuro plástico que já virou a marca criativa da cineasta, integra a programação do Curta Cinema, um dos mais procurados (e prestigiados) eventos exibidores de pequenas grandes narrativas de invenção no Brasil. Internacional, o festival ocorre no Rio de Janeiro, de 30 de outubro a 6 de novembro, tendo ainda como atrações esperadas como Extratos, de Sinai Sganzerla; Alfazema, de Sabrina Fidalgo; e Cães que ladram aos pássaros, de Leonor Teles.

Onde e como se deu a sua entrada no mundo aquoso dos índios Kalapalo?

A entrada deu-se pelo seu antípoda, o rio Tietê, retrato do nosso fracasso civilizacional. Eu moro perto das duas marginais de São Paulo e sempre me estarreço com o que fizemos com esses rios encapsulados em concreto e com a nossa indiferença à esse estado de coisas. Quando a Adelina von Furstenberg chamou-me para fazer parte de um filme para a ONU, o INTERDEPENDENCE, representando o Brasil sobre o tema do meio ambiente, pensei imediatamente no que fizemos com os rios e no contraste com a relação dos povos originários com esses cursos d’agua. Propus fazer um filme/reflexão sobre esse contraste. Foi uma pequena saga chegar até os Kalapalo, o que é, em si, uma forma de proteção dessa cultura tão preciosa, mas o cacique e os moradores da pequena aldeia Caramujo estiveram empenhados em nos mostrar tudo sobre eles, nos quatro dias que passamos lá. Foi uma maratona.

O que foi o processo de investigar aquela cultura?

No processo de imersão na cultura e na condição presente dos indígenas do Parque do Xingú, ficamos a saber que a principal luta que eles estão vivendo agora é a contaminação dos rios por agrotóxicos provenientes das imensas plantações de soja e milho que cercam o perímetro do parque. Esse tema acabou surgindo no processo de pesquisa e como quase tudo no filme, fora as imagens dos rios de São Paulo tão familiares a mim, se impôs à narrativa. Eu fui ao Xingu para ouvir. E para construir o filme a partir do que encontrasse, me deixando ser guiada pelas falas do cacique Farema, que foi muito generoso em dividir conosco a cosmogonia dos Kalapalo, e nos contar sobre as crenças e os costumes de seu povo.

Como se deu a construção visual dessa tua curta em relação à paisagem local e a relação com metrópoles de rios poluídos? Como foi a fotografia?

Contamos ao Farema sobre o desejo de filmar a relação dos indígenas com a água e ele nos deixou acompanhar tudo: os banhos, as brincadeiras das crianças, a busca de água para cozinhar, a ida à praia e a uma pescaria… enfim, tudo o que os indígenas fizeram nesses intensos quatro dias de convívio. Eles estavam se preparando para o Quarup, então treinavam as lutas, que filmamos também. As imagens que conseguimos refletem a sensibilidade do fotógrafo Léo Bittencourt, verdadeiro codiretor do filme, que tem uma elegância e discrição imprescindíveis para conseguir imagens tão pouco invasivas desse convívio, e registrar situações lindas como a das crianças brincando com as lanternas da nossa equipe. A fotografia se impôs como estrutura narrativa, já que só há a narração em off do Farema e as imagens que criam uma trama poética em contraste com o que está sendo dito pelo indígena.

O que esse universo indígena representa como espaço de investigação estética para o cinema?
Eu acho que mais do que um espaço de investigação estética, o cinema abre a possibilidade da escuta do outro, do abandono da figura do indígena exótico, “antropológico” e da abertura de espaço para a fala, para a narrativa do seu ponto de vista.

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