Quinta-feira, 25 Abril

Edgar Pêra e Rodrigo Areias: pelos Caminhos Magnetykos da brigada anti-raccord

O Dinheiro Não é Tudo“. Assim o diz a obra de Branquinho da Fonseca que inspira Caminhos Magnétykos e assim dizem Edgar Pêra e Rodrigo Areias quando questionados sobre as diferenças em fazer cinema em Portugal hoje em dia em comparação ao passado.

Realizador e produtor sentaram-se numa mesa em Roterdão, aquando da retrospetiva – na verdade uma “retrofuturespective” – que o festival holandês dedicou ao cineasta português. Foi uma conversa moderada por Fernando Vasquez, onde se falou da produção de Caminhos Magnetykos, do streaming, de realidade virtual e da parceria da dupla, que já se estende há mais de 20 anos.

No conto do Branquinho da Fonseca, o que te atraiu mais?

Edgar Pêra – Foi o desespero de ver alguém a perceber que o dinheiro não é tudo e da pior maneira. Não é o que lhe acontece que o atormenta, mas o que acontece à filha dele que casa com um homem mais velho e corrupto e que no fundo simboliza uma espécie de venda, ou de compra: como se a mulher fosse um bem. E ele arrepende-se vivamente de nunca ter dado a sua opinião à filha e ter deixado que ela fosse influenciada pelas pessoas todas à volta de que aquela era a melhor maneira, que tinha a vida garantida. E é algo que acho muito atual, essa questão do dinheiro.

Também havia um conto dele, O Conspirador, que era passado na guerra civil e que serviu-me de inspiração para o ambiente de guerra civil do filme

O que também está ligado aos dias de hoje?

Edgar Pêra – Mas sem querer. Eu imaginei o filme já no princípio do século XXI, não havia este proliferar de ascensão de movimentos de extrema-direita a nível global. Não havia nada disso, era ficção científica. Depois, a partir de certa altura, começou a realidade a apanhar a ideia do filme, tanto mais que acabei por usar o nome Donald, que não sabemos se é o Pato Donald ou não, mas que aparece ao telefone. Foi o momento de ligação direta ao presente, mas a maior parte foi imaginado no passado. Há quinze anos. 


Caminhos Magnétykos
 

Este regredir ideológico, poderíamos até pensar em alguns nomes…

Edgar Pêra – Eu acho que os Media são responsáveis em grande parte pela ascensão do fascismo. Estas pessoas, que eu prefiro nunca nomear, garantem maiores audiências aos Media que já estão desesperados. Os políticos normais não lhes dão audiência. Os políticos que apelam ao medo dão muito mais audiências.

O Lovrecraft fala que o maior medo é o medo do desconhecido. As pessoas acabam por votar nestes indivíduos humanóides porque têm medo do desconhecido e caminhamos para o desconhecido, que é o colapso do estado social e não sabemos o que vai acontecer. Os media amplificaram-nos, como era de esperar. Ninguém pode acusar um amplificador de amplificar uma guitarra. Mas, a ganância pela audiência faz com que estes movimentos totalitaristas sejam extremamente lucrativos para o capitalismo…..

E como é que tu e o Rodrigo Areias trabalharam no casting? Por exemplo, a escolha do Dominique Pinon ?

Edgar Pêra – O Rodrigo antecipa as minhas necessidades, sabe determinadas coisas que me vai dizer que eu passado um ano vou pensar que foi minha ideia.

Rodrigo Areias – Estávamos à procura de alguém e falamos de alguém como o William H. Macy, mas as comissões eram impossíveis para a produção. Vi uma curta que ganhou Veneza em que o Dominic entra e é ele o filme todo, algo muito teatral, e estava na sessão a mandar mensagens ao Pêra. Já sei quem é o ator. E o Pêra respondeu, “com uma proposta dessas não vou dizer que não”.

Edgar Pêra – Tínhamos pensado em argentinos, depois em americanos, sempre pessoas de outro continente, mas depois optamos por alguém que vivia em Paris. 

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Caminhos Magnétykos
 

E o caso do Ney Matogrosso?

Edgar Pêra – Também foi uma sugestão do Rodrigo

Rodrigo Areias – Ele tem feito alguns filmes com alguém que também fez parte do casting, a Helena Inês. Para além de atriz, a Helena tem feito alguns filmes e o Ney tem entrado neles. Na altura pensamos neles para fazerem um casal, que agora já não é um casal, mas só o Ney. pois ela teve uma intervenção cirúrgica. O Pêra também não quis substituí-la a última da hora, por isso decidimos adequar a situação.

 

 Obviamente o filme vive muito da experiência estética e visual. Tem uma estética muito vincada. Tu trabalhaste com o Jorge Quintela, que é alguém com uma identidade visual muito marcada, como foi essa dinâmica entre os dois?

Edgar Pêra – O filme era baseado num conceito, que no fundo era a continuação da investigação que tinha feito no Barão, que era a mudança de luz durante um plano. No Barão era só preto e branco, a luz mudava em cambiantes entre cinzento e preto. Aqui quis ir um bocado mais longe, queria fazer cambiantes de cores no mesmo plano. A tecnologia evoluiu e hoje é muito mais simples fazer isso. Comecei por imaginar isso apenas em determinadas alturas, mas depois tornou-se aquilo que dominou o filme todo: essa mudança de cores. Isso foi tudo falado antes, mas é evidente que a escolha de cores foi em função das ações, do ambiente nas rodagens.

E em termos de música?

Edgar Pêra – Eu geralmente prefiro que as pessoas me dêem música que seja genuína do que música para filmes. Muitas vezes quando fazem música para filmes é muito ilustrativa. Eu acabo por colocar aquilo que eles estão a tentar ilustrar noutro sítio, para fazer contraponto ao ter o som e imagem a dizer a mesma coisa. Quero o contrário, a imagem de um lado, o som do outro, e depois encontram-se (…) Se o som e a imagem andarem sempre assim, acho isso ridículo. Não faz grande sentido…

A música é sempre feita em função de determinadas emoções, às vezes encontram-se. Às vezes não. A música do Furtado, a maioria, a música que lá está é dos instrumentos que eu pedi a ele que me desse por pistas, para eu poder manipular depois, fazer entrar cada instrumento. (…) Tínhamos também outras músicas, do Tó Trips, do Manoel de Oliveira, do João Lima. Tínhamos um stock de músicas bastante variado, para o filme. E eu queria que isso acontecesse. Que não fosse só um estilo de música.


Caminhos Magnétykos

E vocês os dois, já se conhecem há muito tempo, como foi a dinâmica agora, algo mudou?

Edgar Pêra – Foi no sentido em que tínhamos mais dinheiro.

Rodrigo Areias – O processo é sempre o mesmo. Nós aproveitamos os festivais como este, para preparar o próximo filme. (…) É um processo de diálogo. Vou propondo coisas, vou percebendo o que é que o Pêra quer.

Edgar Pêra – O que eu ainda não sei que quero. A antecipação que é importante.

Rodrigo Areias – No fundo trabalhamos juntos há 20 anos e somos amigos há tanto tempo como trabalhamos juntos. O Pêra diz que eu percebo antes dele dizer … A minha função é criar condições para que o Pêra possa criar. Criar com o devido espaço de liberdade.

Edgar Pêra– O filme é todo filmado em estúdio, quer dizer, os interiores foram filmados em estúdio, porque o Rodrigo olhou para mim e disse: “tu sentes-te muito melhor a filmar em estúdio“. “Pois, mas não podemos transformar tudo em algo muito abstrato e alienar espectadores“. E ele disse, “que se lixe” vamos fazer um filme verdadeiro e que dês o máximo. E dei o máximo. E a verdade é que se não tivesse filmado em estúdio, não tinha dado tanto.

Rodrigo Areias – Nem era possível chegar aqui. No fundo há uma luta entre o hiper-realismo em que estamos, constrangidos com um colete de forças, em todo o cinema. Como é que não se deita a toalha ao chão? Eu faço um tipo de filmes – enquanto realizador – que acho que se devem fazer. O Pêra faz um tipo de cinema completamente diferente do meu e esse é o tipo de cinema que ele tem de fazer. Muitas vezes temos todas as condicionantes do planeta para que haja uma diminuição da liberdade criativa, um constrangimento radical da forma livre de pensamento artístico, e a minha função, pelo menos, é dar espaço para que o Egar possa fazer aquilo que lhe apetece. (…) Nós fazemos uma piada há uma década que somos a brigada anti-raccord. Por princípio ideológico. O cinema está nessa prisão de tal maneira que deixa, inclusivamente, de ser divertido.

Tens algum projeto agendado de realidade virtual?

Edgar Pêra – Temos um projeto de realidade virtual e interessa-me o cinema virtual, já há bastantes anos. Só ainda não tivemos tempo de concretizar. Eu gostava de fazer um filme de cinema subjetivo virtual, em que o espectador é a câmara. Isso interessa-me muito. Fazer do espectador o homem-câmara.


Caminhos Magnétykos

Acham que o streaming é um problema, especialmente na perspetiva em que contribui para que o público se mantenha longe das salas de cinema?

Edgar Pêra – A Televisão já o fazia. Hollywood escavacou todo o sistema de produção ao passar a ter só filmes abaixo dos 4 milhões de dólares, ou acima dos 80 milhões de dólares. Tudo o que estava ali no intermédio, aquilo que era considerado produção independente, a geração dos Scorseses, etc, esses filmes, com orçamentos de 8, 10 milhões, esse investimento passou para a televisão. Por isso tens hoje grandes realizadores de cinema a trabalhar para a televisão, a fazer séries. A produção passou para o outro lado porque o público passou para o outro lado. Efetivamente, o público do cinema é outro. (…) Há uma geração – de Netflix, Youtubes e coisas mais radicais – agora que já nem espera pelo episódio a seguir, nem está já nessa. É outra voracidade de consumo. Por isso, estamos perante uma transformação social. Que isso traz problemas para nós? Sim. Eu por exemplo estou em conversações com o CEO da Netflix para México, Espanha e Portugal, e sei que para ele sou o parente pobre. Alguém em Los Angeles, que tem três países na mão, que são México, Espanha e Portugal, é óbvio que o nosso país é completamente irrelevante. E ele pode ser um gajo simpático e achar-me simpático. Eu sou absolutamente irrelevante para o negócio dele. E o tipo de cinema que nós fazemos é completamente irrelevante para ele.

Rodrigo Areias – Se me falares se temos alguma coisa contra a MUBI, por exemplo, não. Foi feita uma proposta para fazer uma retrospetiva do trabalho do Pêra na MUBI. Claro que não temos nada contra, a ideia é mostrar os filmes ao máximo. O grande princípio e acho que é um princípio ideológico, é: até que ponto é que tu tens de mudar o tipo de filme que fazes para chegar ao público. É essa é a grande linha ideológica que eu jamais quero cruzar. E posso ter de a cruzar várias vezes na vida, mas prefiro acreditar que lutarei para não o fazer, ou trazer o público para ver os nossos filmes. São conceitos distintos. Eu acho que quando alguém decide fazer algo para agradar ao público, significa que já desistiu do resto. Por exemplo, nesta retrospetiva passa o Virados do Avesso, por imposição do curador [Olaf Möller], que diz – e bem – que não quer fazer uma retrospetiva de Edgar Pêra sem essa peça que acha fundamental. Em detrimento de outros filmes (…) O Virados do Avesso não deixa de ser algo interessante nesta discussão porque é o Pêra a dizer “Ok, vou fazer o filme para chegar às pessoas, usando os códigos da comédia popular, que são de simples utilização, e eu vou fazer só para vocês perceberem que eu também consigo chegar às pessoas. Depois volto para o meu Universo, amigos na mesma… dá cá um abraço“.


Virados do Avesso

Edgar Pêra– Em relação a Netflix e companhia, tenho a dizer que vieram fazer uma coisa ótima em relação à televisão que foi acabar com a publicidade. Isso é excelente. Eu poder ver uma série ou um filme sem estar constantemente a ser interrompido por anúncios, foi excelente. E mesmo que os acelere, destrói-me a leitura do filme. Esta coisa de passares de ter um programador para ter uma biblioteca é melhor. Eu prefiro ter uma biblioteca a ter um programador que me quer impingir anúncios a cada quinze minutos.

Rodrigo Areias – O problema principal da Netflix não é o modelo de negócio em si (…) há algo mais grave. É a produção. A Netflix – e nós falamos no ROMA porque é uma exceção – decidiu produzir e financiar cópias dos seus próprios produtos. Através dos algoritmos percebem que o que as pessoas gostam é de comédias românticas em que o protagonista morre passados 32 minutos, ao 37º tem de aparecer um carteiro manco, e a partir disto têm a fórmula. Esse é que é o problema. A criação de fórmulas e a perpetuação da fórmula. O problema da Netflix é a formatação extrema do espectador, utilizando a formatação dele para o formatar ainda mais. É o epíteto máximo da televisão. A estupidificação de todo o planeta. (…) Quem programa televisão diz que é isto que as pessoas querem ver, que é um o epíteto máximo do populismo. O fascismo ao extremo.

Depois deste meio caminho na carreira, sentem que é mais fácil fazer cinema em Portugal agora desde que começaram?

Rodrigo Areias – Nós temos uma diferença de idades, não parece porque o Pêra tem este ar novinho e eu estou todo estragado. Quando o Pêra começou era muito diferente.

Edgar Pêra – Quando comecei havia uma coisa muito simples que era o preconceito contra as câmaras de vídeo. E como havia esse preconceito, que eu próprio tive, mas venci-o, as pessoas julgavam que precisavam de muito dinheiro para filmar em película. Portanto, ficavam todas confinadas aos concursos. Como esses concursos eram para uma minoria, todos os outros concorrentes iam para o café falar sobre esse assunto. O Vídeo era considerada uma coisa mesmo reles. Só mais tarde é que passou a ser uma opção. Isso a mim deu-me uma vantagem na altura, porque foi a hipótese de captar imagens do real com a minha câmara e depois fazer coisas com isso. Eu só posso falar da minha experiência.

Hoje, é evidente que ninguém tem a desculpa para dizer que, se meter todos os fins de semana, como fez o Paulo Abreu a filmar um motoqueiro de tuk tuk, não é possível fazer um filme. E nós já fizemos filmes sem dinheiro algum. Aliás, já fizemos filmes em que pagamos para os fazer, como o Lisbon Revisited. Pagamos uma fortuna para fazer o filme. (…) Isto é uma atitude.

Rodrigo Areias– (…) Hoje há formas de financiar que há dez anos atrás eram impensáveis.

Edgar Pêra– Quando eu comecei a trabalhar não havia financiamento para curtas, para documentários, para finalização de projetos, não haia para nada. Havia para longas-metragens, para mais nada. Era a televisão, se quisesses fazer alguma coisa, que foi o que fiz. E não havia mais nada…

Rodrigo Areias – Hoje é mais fácil.

Edgar Pêra – Sim, é mais fácil, mas também há mais pessoas. Porque também veem que é mais fácil.


Caminhos Magnétykos

E é mais fácil chegar ao público?

Edgar Pêra – Foi o que já disse. Cada vez mais difícil

Rodrigo Areias – Para nós estrearmos um filme, basta o Monumental ter fechado para isto já estar mais dificil. É verdade que o Trindade [no Porto] é um caso de sucesso…

Edgar Pêra – Mas em Lisboa, não existem muitos cinemas que tenham público e que não estejam às moscas e sejam vocacionados para o cinema de autor

Rodrigo Areias- Isso é um problema em todo o lado e por isso o cinema de autor perdeu espectadores em todo o mundo. A tal formatação. Por isso o público está nos festivais. É aqui que acontece o encontro de cinéfilos. Aqui, ontem, a sala esgotou, hoje também. Isto para ver o Caminhos Magnétykos. Quantas salas comerciais vamos esgotar?

Edgar Pêra – Sim, se fosse contabilizado o público daqui eu já tinha uns milhares à conta da retrospectiva

Rodrigo Areias – Os cinéfilos estão confinados aos festivais. Mostras o teu filme no São Jorge, para 800 pessoas, num festival, e metade dos teus espectadores “já foram à vida”. Depois, não existe um sistema de distribuição em harmonia com o país, ficas preso entre Porto e Lisboa.

Sentes alguma pressão adicional depois de uma retrospetiva como esta?

Edgar Pêra – Não, eu acho que as pessoas é que devem sentir isso. Elas pensam: “fogo, como é que ainda não vi os filmes deste gajo?“. A minha pressão é continuar, mas isso também não é pressão. Só ajuda. Só vejo coisas benéficas. Sentiria mais pressão se tivesse um filme com seis milhões de espectadores. Aí sim, já sentiria pressão de ter de fazer outro assim.

É o caso da Netflix. Há filmes feitos para eles que são totalmente cópia de outros filmes e que são uma cagada. Malfeitos mesmo. Pagam aos atores para serem um chamariz mas depois não há mais nada. Nem campos e contracampos sabem fazer. É tudo básico, escolhem um gajo qualquer que fez o anúncio da Madonna e pronto. Um pau mandado…Eu já vi muitos filmes desses. Eu vejo muito lixo. Alimento-me de lixo. Sou ecológico (risos).

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