Sexta-feira, 19 Abril

Technoboss: o outono da vida em forma de musical e malandrice

Calcado no carisma de um ator não profissional como protagonista (o jurista Miguel Lobo Antunes) e num inusitado misto de ironia e leveza, a comédia musical Technoboss fez um levante contra os formalismos mais semióticos do cinema autoral europeu nos ecrãs da 72ª edição do Festival de Locarno.

Se no nietzschiano John From, o realizador João Nicolau mapeava a primavera de uma vida (a mocidade), aqui ele concentra-se no outono do viver, mas sem o peso do tempo. A primeira das três longas-metragens de Portugal em concurso pelo Leopardo de Ouro a ser exibido no evento suíço, essa mistura de Harry and Tonto com Jacques Tati contageou a disputa por prémios com o seu humor e as suas melodias.

Irmão do escritor António Lobo Antunes, Miguel vive (sem qualquer experiência de atuação prévia) Luís Rovisco, o mais antigo representante de uma firma de câmaras de segurança, monitores e sensores de cancelas. O dia a dia da SegurVale – Sistemas Integrados de Controle de Circulação é sua vida há três décadas. Só que a sua reforma está para chegar. Na trama editada por Nicolau, em parceria com o cineasta italiano Alessandro Comodin, vemos uma jornada do Sr. Rovisco para se manter na euforia, mesmo com a crónica da morte da sua vida profissional já anunciada. Um neto cheio de alegria e um gato, Napoleão, serão os seus companheiros num périplo por hotéis e firmas, sempre regado a músicas que desafiam o realismo… mas nem tanto.

As tropelias de Luís Rovisco dão-nos a sensação de que, no ethos de “Technoboss“, o erro é perpétuo e o acerto é algo situacional. Que ethos é esse e como ele espelha a atual realidade de Portugal?

Eu acabei o filme há duas semanas, o que me tira o tempo de ter o devido distanciamento para avaliar o que fiz. Mas há ums frase do poeta Herberto Helder que diz: “O erro é a razão do acerto“. Não há vontade metafórica em representar o que se passa em Portugal. Há só a vontade de dar movimento às personagens, numa relação de atração e repúdio ao musical clássico. Luís Rovisco vai entrar na reforma. Mas eu não desejo representar a sua velhice… a velhice… com comiseração. Não há, nele, uma diferença entre erro e acerto, pois ele está bem consigo mesmo. Aliás, o que há de mais fantasioso no filme é isso: o facto dele estar sempre bem, com o seu gato e com o seu neto, choca a sociedade. Criar uma personagem assim foi um desafio, sobretudo se pensarmos que o cinema parte de personagens em conflito.


João Nicolau e Luís Urbano | © Locarno Film Festival /Samuel Golay

Parece haver algo de Jacques Tati nessa história que arrancou risos na sessão para a imprensa de Locarno. Parece haver nela um desejo de se comunicar de forma mais aberta com a plateia, apesar da sua aposta no risco de revisão estética do musical. Como é essa busca por diálogo?

Essa menção ao Tati… Não o vejo há tempos, mas somos feitos dos filmes que vimos. E eu queria fazer com a figura de Luís Rovisco um filme físico… como os de Tati de facto são. Mas o essencial da sua pergunta é o que disseste sobre “fazer junto com o espectador“. Eu conversava muito com o Comodin, na montagem, sobre como o bom cinema socialista da Itália, a terra dele, não pretendia ser manipulador nunca. Havia, sim, um jogo: alinha-se a ele ou não. Mas o trajeto daquele cinema fazia-se de uma forma participativa. E é o que tento fazer aqui.

Portugal disputa o Leopardo de Ouro com três filmes, vai concorrer ao Leão de Ouro, vai à seleção oficial de Toronto e brilhou em Berlim. Como você vê o cinema do seu país hoje?

É ainda um país que produz pouco, sobretudo longas metragens. Mas quase todos esses nossos filmes aceites em grandes festivais devem-se a uma liberdade de filmar. Não vi os filmes dos meus colegas, mas acredito que sejam muito diferentes. No entanto, nós todos fomos animados pela liberdade de uma geração que veio antes. Os nossos meios de financiamento seguem reduzidos, mas é importante que o público dos nossos filmes não se restrinja aos espectadores do nosso país.

O seu cinema é o que hoje se vê de mais nietzschiano na produção de língua portuguesa. Qual é a dimensão filosófica mais consciente da sua obra?

No meu cinema não há um escrutínio forte, não há um programa. Há só o interesse em tocar em pontos das pessoas que são imperfeitos. Luís Rovisco é capaz de malandrices, mas é uma pesssoa boa, ainda que imperfeito. É o que me interessa.

Fora Technoboss, o cinema luso marca pontos na luta pelo Leopardo de 2019 com O fim do mundo, de Basil da Cunha, e com Vitalina Varela, de Pedro Costa.

Locarno prosegue até o dia 17, quando acontece a entrega de prémios do júri presidido pela realizadora francesa Catherine Breillat. O filme de encerramento será “To the ends of the Earth“, do japonês Kiyoshi Kurosawa.

Notícias