Sexta-feira, 19 Abril

«Besta»: “Os monstros existem e não estão apenas nos contos de fadas”, diz Michael Pearce

Michael Pearce não brinca. À primeira longa-metragem conseguiu uma série de nomeações aos prémios do cinema britânicos, inluíndo os BIFA e os BAFTA. Para o seu Besta, um conto de fadas para adultos, parte história de amor, parte thriller, o cineasta inspirou-se num caso famoso criminal da ilha de Jersey, local onde cresceu e que serviu de inspiração para o seu projeto.

Nesta entrevista, o realizador explica-nos um pouco mais do trabalho de conceção da obra, das suas inflências, mas também do futuro, que vai certamente passar pelo cinema e por um filme de ficção cientifica. Aqui ficam as suas palavras.

 Sei que já respondeu a isto várias as vezes, mas como nasceu a ideia de fazer este filme?

Eu cresci em Jersey, onde o filme se desenrola e houve um tipo, que apelidaram de A Besta de Jersey, que cometeu uma série de crimes horrendos. Isto foi nos anos 60, ele usava um disfarce e uma máscara para entrar na casa das pessoas, ele raptava as crianças e atacava-as na floresta. Era algo inimaginável de acontecer numa ilha tão pequena, o que causou um forte trauma na população. A coisa bizarra é que ele tinha uma mulher e um filho que não faziam ideia que ele era assim. Ele era uma pessoa vista como normal e funcional na comunidade. E andou à solta durante 10 anos.

Ora, isto aconteceu nos anos 60 e eu vivi na ilha nos anos 80, período em que ele era olhado como uma espécie de bicho-papão na ilha. O que me marcou nessa história enquanto crescia é que esse foi o momento em que percebi que os monstros existem e não estão apenas nos contos de fadas. Eles podem ser o nosso vizinho do lado e existir num sítio como Jersey, que é um lugar muito seguro, calmo e idílico para crescermos.

Isso confundiu-me muito quando era miúdo e também na idade adulta. Por isso quis fazer um filme que olhasse para esse tema, mas de um ponto de vista mais longínquo. Não queria seguir o assassino ou os detetives, mas observar uma personagem estando na periferia da história. Focar-me na namorada e acompanhar a sua jornada complexa da forma melhor possível.

Uma das coisas que gostei particularmente foi a maneira como filmou a ilha. É – como disse – um local belo, mas ao mesmo tempo temos sempre a impressão que algo de mau vai acontecer. A ilha, de certa maneira, é uma personagem igualmente?

Sim. Jersey tem duas leituras. De um lado é muito paroquial na sua atmosfera, bastante conservadora, calma e insular. Senti-me um pouco alienado na ilha, pois quando era adolescente não encontrava nela o que queria. Mas por outro lado, o espaço tem um lado muito poderoso e primitivo. Eu considero a paisagem intoxicante. Por isso considerei o espaço perfeito para o que queria filmar. De certa maneira, a fita é do género de filmes de escapar a uma prisão.

É sobre uma jovem que se sente enclausurada nesta ilha e enclausurada naquela família. Quando ela se apaixona pelo Pascal, é como se escapasse dessa prisão. E a ilha ficou como um ótimo pano de fundo para contar esta história de amor tão indomável, sensual e atmosférica. Por isso, o meu foco foi mais a história de amor e a sensação de aprisionamento que uma tentativa de construir uma paisagem tensa.

O Michael mistura vários géneros no seu trabalho, como o romance, o thriller, o suspense. Vai ser esta a marca do seu cinema?

Mais que um filme sobre um género ou isso é um trabalho focado nas personagens. O centro era a mulher e o objetivo era mergulhar na sua mente e explorar quem ela é. A melhor forma de fazer isso é através do cinema de género, pois funciona como uma forma sedutora de transportar o espectador para a personagem. Os géneros são para mim uma poderosa ferramenta para atingir a essência das personagens. Não estou muito interessado em trabalhar num filme exclusivamente de género, mas antes em aproveitar isso para entender a psicologia por trás de um drama.

E como foi o trabalho com os atores? É um cineasta que dá espaço para eles preencherem as personagens?

Eu dou-lhes sempre um pouco de espaço. Quando trabalho no guião, que neste caso demorou 7 anos, pretendo que eles sigam bem o texto e invisto muito nisso. Porém, eu não preciso que os atores digam as suas falas exatamente como estão escritas. Para mim não é sobre a precisão das palavras ou o seu ritmo, mas as suas intenções. Se um ator quiser dizer as coisas de uma maneira diferente à que está escrita, fico contente com isso. Quando estou nas filmagens, aquilo que acho mais crucial é a autenticidade na sua performance. Não quero que eles sacrifiquem isso, para dizer um diálogo que está escrito de uma maneira.

Mas também não improvisamos muito. Há algumas cenas em que improvisamos, mas geralmente seguimos o que está escrito. E tivemos um longo tempo juntos a preparar os diálogos na pré-produção. Eu e a Jessie Buckley a preparar a Moll e eu e o Johnny Flynn a trabalhar no Pascal encontramo-nos regularmente. Falávamos do guião, eu dava-lhes filmes para verem, partilhamos livros, e falávamos do Beast. Foram uns quatro meses antes de começarmos a filmar. Foi uma forma de nos ligarmos na mesma frequência em termos criativos.

E houve filmes que sugeriu a eles. Que fitas e realizadores serviram para os inspirar a eles e a si para este trabalho?

Houve alguns filmes mais antigos, como O Carniceiro (1970), do Claude Chabrol e a Mentira (1943), do Alfred Hitchcock. Também houve, na linhagem de contos Os Noivos Sangrentos (1973), um dos meus filmes preferidos que foi realizado pelo Terrence Malick; Um Coração Selvagem (1990), do David Lynch, que tem uma abordagem distorcida do conto de fadas e de uma história de amor. Também me inspirou a Jane Campion, na maneira como faz o trabalho de câmara na mão, e o da Lynne Ramsay.

Nas performances, as referências que dei à Jessie foram o Martha Marcy May Marlene (2011), do Sean Durkin, que é um grande filme…

Curioso, agora que fala nesse filme, o ambiente realmente é sempre pesado no anúncio da tragédia…

Exato. No tom e ambiguidade. Ela é a heroína mas também a anti-heroína. Há momentos em que pensamos que ela é a vilã. Adorei isso. Houve também outro filme, o Breaking The Waves, do Lars Von Trier. A performance da Emily Watson é uma das mais poderosas do cinema.

Para o Johnny Flynn, no que diz respeito a referências, falamos muito de psicopatas no cinema e de quem seria um bom modelo. Ambos adoramos o Ruptura Explosiva (1991), da Kathryn Bigelow. Conhece o filme?

Sim, claro, dos surfistas que assaltam bancos. Com o Keanu Reeves e o Patrick Swayze…

Exato. Eu sei que é um bocado “cheasy” dos anos 90, mas considero a personagem do Swayze é um dos melhores retratos de um psicopata. Porque quando vemos o filme, apaixonamo-nos pela sua personagem, queres ser amigo dele, sair com ele, etc. É muito sedutor e só no final do filme apercebes-te que ele é um psicopata.

Nós preferimos essa abordagem. Na maioria dos filmes, nós sabemos quem é o mau da fita. Está bastante claro quem é o psicopata. E isso é crucial porque a maioria dos psicopatas são muito manipuladores e astutos. Nós queríamos fazer algo assim. Este Pascal, não sabemos se é o príncipe encantado ou o lobo mau. Só devemos descobrir isso no fim e quando se souber a verdade, temos de ficar desolados, de coração partido.

Esta foi a sua primeira longa-metragem e conquistou com ela inúmeros prémios, incluindo um BAFTA. Qual foi a sensação de receber esse prémio?

Nunca está realmente preparado para isso. É um momento bastante surreal. Tu nunca pensas nisso quando estás a fazer o filme, a única coisa que fazes é pensar nos desafios diários da produção. Ficamos estáticos quando saíram as nomeações. Muito contentes por estar juntos a grandes cineastas, para os quais eu olho para cima. Sentimos logo que já tinhamos triunfado (só com a nomeação). Numa das categorias estávamos nomeados ao lado do Yorgos Lanthimos e Lynne Ramsay, que para mim são dois heróis e pessoas que fazem do melhor cinema que anda por aí. No tapete vermelho estávamos já felizes só por estar ali. E depois ganhamos. Nem sei explicar, parece uma daquelas experiências fora-do-corpo, porque não acreditas bem que aquilo está mesmo a acontecer. Para ser honesto, a única coisa que pensava era em não dizer nada estúpido em palco. (risos) E tentar-me lembrar a quem tinha de agradecer.

Para além disso, sentimos que era o capítulo final do projeto. Estreamos em Toronto em 2017 e tivemos uma receção muito boa junto da audiência e críticos, e este triunfo foi como o último capítulo. Podíamos finalmente por um ponto final neste projeto e arquivá-lo. Fiquei muito orgulhoso desse trabalho.

E está já a trabalhar num novo filme. Li que estava a preparar um filme de ficção científica chamado Invasion.

Sim. A produtora é a Raw, que fez recentemente o American Animals. Não posso dizer muito do filme, mas posso acrescentar que é um thriller de ficção científica a partir das personagens de um pai e filhos que vivem no sudoeste americano e que têm de partir numa viagem devido a uma iminente invasão alienígena. É só isto que posso dizer…

E quando planeiam estrear?

A principal coisa, como acontece na maioria dos filmes, é que precisas encontrar um ator que traga financiamento. Felizmente não tivemos esse problema no Beast, pois era um filme de baixo orçamento. Mas o Invasion é um trabalho de maior orçamento. Por isso, as filmagens vão depender de quem encontramos e da sua disponibilidade. Não posso já dar uma data.

E tem outros projetos? vai focar-se mais em filmar nos EUA ou prefere continuar no Reino Unido?

Tenho o Invasion nos EUA e outro projeto no Reino Unido. Eu vivo em Londres e não me vou mudar para Los Angeles tão cedo. Há demasiado trânsito (risos). Nunca se sabe o futuro, mas para já a minha vida é em Londres.

Mas atenção, eu adoro o cinema americano. A razão porque me apaixonei pelo cinema foi pela Nova Hollywood, à conta de filmes como O Padrinho (1972), O Vigilante (1974) e Apocalypse Now (1979), todos de Francis Ford Coppola, o Um Dia de Cão (1975) [Sydney Lumet], A Semente do Diabo (1968) e Chinatown (1974) [ambos de Roman Polanski]. Foram estes filmes que fizeram de mim um realizador.

E as novas plataformas? Tenciona trabalhar para elas ou considera-se um realizador para cinema?

Escolho o cinema. Eu não vejo muita TV, vejo um par de séries anualmente. No ano passado vi o Mindhunter e O Big Little Lies, mas normalmente aborreço-me com as séries intermináveis, como aquelas que já vão na 8ª temporada.

Mas pondera trabalhar para essas plataformas, até pode ser para um filme?

Talvez no futuro, mas neste momento quero fazer uns quantos filmes no cinema. Se surgir a oportunidade, vamos lá ver. Há alguns programas de TV que adoro. Por exemplo, a primeira temporada do True Detetcive. É uma série feita de um jeito completamente cinematográfico, não só na estética, mas também na ambição. Eu revi recentemente a série e é incrível. Você pode mostrar aquilo numa sala de cinema que a sua qualidade salta à vista.

Por isso, se um dia tiver a oportunidade de fazer algo nessa linha, arriscaria. Mas para já vou continuar a fazer filmes para o cinema. É onde o meu coração está e nisso sou um pouco romântico.

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