Sexta-feira, 19 Abril

«Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos»: uma conversa pela dignidade do indígena

Hoje, mais que tudo, existe uma urgência na defesa do indígena em território brasileiro. O novo Governo legitima um desejo antigo: a transformação destas reservas em zonas de exploração mineira e outros afins, que os irão levar a um iminente extermínio. Os “índios” resistem há 500 anos, mas a resistência não é tudo nesta cada vez mais negra atualidade.
Com Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, a dupla Renée Nader Messora e João Salaviza concentra num filme uma pequena parte dessa luta. Uma obra que tenta instrumentalizar-se como denúncia a uma discriminação estruturada, mas acima de tudo uma aproximação à tribo krahô, que aqui serve de exemplo para novas abordagens representativas do ameríndio, fora do conceito de “bom selvagem” da romantização ocidental.
O C7nema falou com os cineastas sobre esta experiência, passando pelas preocupações de um Brasil da “nova era” e do racismo entranhado, não só no “país irmão”, mas também em Portugal.
Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos é um grito para despertar consciências. 
 
Como nasceu a ideia para este projeto? Foi algo premeditadamente planeado ou foi gerado através da experiência?
 
Renée Nader Messora – Na verdade, fui assistente de realização de Montanha e nós acabamos por virar um casal. Já nos conhecemos há imenso tempo, aliás, estudamos juntos Cinema em Buenos Aires. No meu caso, já trabalhava na Aldeia Branca desde 2009 e durante o tempo em Lisboa falavamos sempre dela, e sobretudo vendo imagens. 
 
Quando acabamos de filmar a Montanha, ambos cansados, fomos para a Aldeia com o intuito de descansar e assim começamos a instalar-nos lá e a iniciar as filmagens. Foram várias viagens, de 3 a 4 meses, e a partir daí a história do ‘Chuva’ foi se desenhando. Mas acima de tudo a nossa decisão foi de estarmos naquele lugar e dividir o nosso tempo com aquelas pessoas e com isso fazer um filme, que se tornou a nossa maneira de aproximar o nosso trabalho.
 
Mas nós não fomos para lá para fazer um filme. O filme acabou por ser um pretexto para nós vivermos lá de forma estruturada e abordar as questões da nossa vida. Foi uma maneira de juntar a vida e o cinema que é um sistema oposto quando se faz um filme. Quando se faz um filme, por vezes chegamos a ter 2 a 3 meses que são parênteses na nossa existência. Nesse período somos incapazes de conviver com aquele amigo ou simplesmente ir ao dentista, tudo porque entras em processo de rodagem. 
 
E neste caso é um processo oposto – tudo acontecia antes do filme. Possivelmente o filme era o que tínhamos de menos importante na nossa rotina e na nossa relação com aquela comunidade. O Ihjãc, o nosso protagonista, é que determinava o que podíamos ou não filmar e por quanto tempo poderíamos filmar. Com um modelo tão minúsculo, os dois e uma comunidade, foi um processo vagaroso. 
 
[para João Salaviza] Encontrou  nesta aldeia uma oportunidade para incutir um novo tipo de Cinema na sua carreira?
 
João Salaviza – Do meu lado, houve uma sensação de esgotamento de um certo modelo de fazer Cinema o qual ia replicando filme após filme. A verdade é que em nenhum dos meus filmes fiquei plenamente satisfeito com os modelos de produção, e nada disso teve a ver com o produtor. Sempre senti que precisava mais tempo.
 
Com o Montanha, de certa forma, senti um encontro com uma produção maior e invulgarmente com mais tempo de rodagem para uma longa-metragem. Levamos seis meses. De alguma forma, o filme dava por encerrado o interesse, ou uma pesquisa, a qual vinha a desenvolver nas minhas curtas – uma relação da adolescência com a cidade – que se foi construindo até chegar ao Montanha.
 
A Renée estava ciente deste meu plano de fuga e foi a partir daí (o final de rodagem da Montanha) que conheci os krahôs e concretizei o meu desejo de mudar radicalmente de vida (tentar viver de outra forma e em outro tempo). Uma coisa que aprendemos com eles foi este modelo numa sociedade, que não é pós-capitalista como a nossa, mas ultra-capitalista onde o centro é a ideia do trabalho. No Cinema também acontece isso, paramos 14 horas da nossa vida para fazer um filme e muitas vezes entre o fazer e o viver criamos uma ruptura nas questões vitais que o próprio Cinema esteriliza, o que distancia o que omodelo de produções propõe.
 
Na aldeia começamos a pensar numa outra forma de vida e isso gerou um novo método de filmar. O facto é que o Cinema e a vida estão muito diluídas, uma na outra. A maior parte do dia, o filme não era o assunto fulcral do nosso quotidiano, muito menos para os krahôs. O que estava a ser incorporado no filme era sobretudo o que estava a ser vivido por nós. Não era possível pensar no Cinema da mesma forma naquele contexto, ou seja, replicar esses modelos convencionais numa aldeia que tem uma organização social, política e económica bem diferentes da nossa. 
 
É a realidade a impor nos sistemas de produção e, em última instância, a própria mise-en-scéne a ser imposta pelas questões vitais que se experienciou.
 
Confesso que assisti ao vosso filme na sua estreia em Cannes e naquela altura o eventual extermínio era uma ameaça, hoje uma realidade devido a este novo Governo brasileiro. 
 
RNM – Sempre foi uma realidade.
 
JS – Mas julgo que hoje concretizou-se.
 
RNM – Não acho. Obviamente que hoje tem uma fase mais violenta e mais óbvia até. Os índios estão resistindo há mais de 500 anos e sempre estiveram ameaçados. Não existe coexistência com o branco que não seja a ameaça. Claro que o Governo veio legitimar o que todo o Mundo queria fazer, mas para o qual não tinha “autorização”. 
 
A verdade é que depois da democratização, nenhum governo foi politicamente atuante nas questões e políticas indígenas. Aliás, nem estavam incluídos nesses pacotes de pobres.
 
Pois, de um certo ponto de vista, os indigenas não são bem “brasileiros”, nem sequer “pobres”. 
 
JS – São os brasileiros originários.
 
RNM – Uma coisa que eles não são é nem brasileiros, nem pobres.
 
JS – Hoje tudo se tornou mais descarado, deliberado e propagado. Existia na altura uma “autocensura” na política brasileira nas questões de visibilidade internacional. Mesmo na época da Ditadura, houve uma maquilhagem com as políticas de defesa do indígena no discurso público, que não eram verdade. 
 
Sei que saiu uma notícia há pouco tempo de que este governo vai mesmo avançar com uma lei que permite extração de minérios em territórios indígenas.
 
Quando saímos da aldeia e partimos para o vilarejo, o nosso krahô fica exposto a toda uma metáfora sonora da atualidade brasileira. Falo de uma masculinidade tóxica sobretudo na música sertaneja e da cultura do rodeo, da religião e o seu empoderamento. Neste aspeto, o pastor que prega em cada esquina, mas apenas ouvimos. Isto é obviamente um mundo que não lhe pertence e que o ameaça?
 
JS- Essa ameaça sempre esteve muito presente. No caso dos krahôs, o contacto com os brancos já conta com 200 anos, não tão recentes como alguns povos da Amazónia que tentaram ao máximo retardar esse contacto. Este cerco foi apertando mais e mais e esta hostilidade sempre esteve lá. Eu e a Renée fomos para essa cidade e deparamos com a existência de uma espécie de Santa Trindade Brasileira, que é anti-indígena. A Política, a Igreja e o Capital, com todas as facetas, que vão desde os fazendeiros, passando pela bancada da bala e os evangélicos, que são muito mais tenebrosos do que a igreja católica foi no passado.
 
Foste um dos primeiros a reparar na questão do som que mesmo uma ideia que tentamos transparecer. Uma ideia de cerco, onde ouvimos esta santíssima trindade a apropriar-se da cidade. Principalmente porque estávamos na época de eleições, que no Brasil começam um ano antes.
 
Na cidade era possível ouvir os altifalantes dos dois únicos supermercados da região, ambos pertencentes a dois “manda-chuvas” do sítio. Tudo aquilo é uma micro-representação de toda a sujidade institucional e da corrupção do poder político.
 
Tentamos que este cerco estivesse presente no som. O apelo ao consumo, a propaganda política e o pastor, que não se vê, mas está presente. Aliás, eles não se veem fora da igreja. Eles não circulam, normalmente estes pastores vêm de fora, chegam à cidade e fundem a própria igreja, estão 2 a 3 anos a “sugar” o que podem e depois seguem para outra.
 
Esta hostilidade de diferentes instituições públicas que propagam imensas ideias antagónicas ao modo de vida dos krahôs. Até mesmo as bem intencionadas, como a política de saúde, muitas delas partes de planos sociais do PT, são completamente desfasados à realidade indígena. 
 
Sempre quisemos que este choque cultural e ontologias estivessem presentes no filme, ao mesmo tempo sem querer idiotizar a imagem dos krahôs.
 
Que desafios tiveram na abordagem e representação do dito indígena?
 
RNM – Uma questão de ponto de vista. O mais importante é tentar filmar uma subjetividade. Aproveitar que estamos dentro daquela comunidade, daquelas pessoas (essa condição é anterior ao filme e não nasceu dele) e dessas relações que nos permitem aproximar dessa mesma subjetividade, que o Cinema não está acostumado a mostrar.
 
No cinema, normalmente, o indígena é sempre mostrado a partir desse embate, desse conflito e, por isso, é habitual vermos o indígena militante. Mas eles trazem questões muito anteriores a esse contacto, mas tal nunca vemos, e sempre pensamos nisso com o Chuva’. Por exemplo, naquelas meninas que se encontraram e começam a falar dos namorados. Essa aldeia inserida nesse contexto brasileiro, essas questões [a da discriminação] têm que estar presentes no filme, mas não com tanto peso. Não vamos fazer um filme sobre os problemas que os brancos trazem para os indígenas. 
 
JS – Há algo de contraditório neste tipo de representação, no qual identificamos duas formas de representar o índio no imaginário ocidental. Primeiro como uma figura cristalizada do século XVI. Como se estes anos o contacto não tivesse provocado qualquer tipo de alteração . Como fósseis vivos se tratassem. 
 
E isso acontece em muito Cinema. Por exemplo, mais recentemente em Lost City of Z de James Gray. A enésima aventura do homem branco na selva e quando aparece o índio, este descola da paisagem para ajudar o branco e dizer duas ou três frases proféticas, e logo depois autoexclui-se da narrativa e regressa para o século XVI.
 
Existe muito desta romantização do índio como figura profética e de conhecimento de coisas inquestionáveis. São figuras sem subjetividade, são estereótipos. São oráculos com pernas [risos]. É uma ideia muito século XIX, eurocêntrica, oriunda dos primeiros aventureiros, que é o bom selvagem.
Depois existem outros filmes que nos interessam mais, mas que só filmam o índio (ou ameríndio) em conflito com o branco, ou seja, para o definir é preciso usar os nossos padrões de existência como barômetro. Daí existirem muitos filmes de índios contra brancos. 
 
O contacto dos brancos existe e isso reflete o que os krahôs são hoje ou como eram há 200 anos atrás. Há uma série de questões que são anteriores a esse contacto que ainda persistem nos krahôs (como também naquelas que não são exclusivas deles).
 
Uma das imagens marcantes do filme é uma das primeiras cenas, a do protagonista que dialoga com um espírito ao pé de uma cascata. Gostaria que me falassem dos momentos misticos do filme, esse mundo espiritual que encontra uma certa naturalidade com a vida dos krahôs
 
RNM – Esses encontros com o espiritual fazem parte do quotidiano. Os krahôs são muito minimalistas, os espíritos de todas as coisas interagem entre si, uma sociedade paralela, onde muitas delas atuam no mundo material. Sempre quisemos que essa relação com o quotidiano estivesse presente no filme. Nunca foi nossa intenção abordá-los como encontros sobrenaturais, oníricos ou fantásticos.
 
JS – Já nos perguntaram como filmamos esses ditos encontros sobrenaturais, mas a realidade para os krahôs é que são coisas que ocorrem em paralelo com o quotidiano. É muito comum num almoço, enquanto discute-se se a comida está salgada ou não, alguém dizer que viu o espírito do avô ou da criança que faleceu recentemente. Não são fenómenos sobrenaturais. Pelo contrário, são naturais. Esses mundos encontram-se diluídos um no outro. 
 
O mesmo em relação aos sonhos. Essa divisão freudiana entre o consciente e o subconsciente para os krahôs simplesmente não existe. O que acontece é que o nosso espirito sai do corpo e deambula. O espírito, é isso mesmo, uma entidade dupla do corpo.
 
Quando eles relatam sonhos, que é muito comum no seu dia a dia, são encarados como acontecimentos na vida dos espíritos das florestas. Por isso, pensamos em filmar essas sequências não tão diferentes das outras do filme. Na cena da cascata, por exemplo, filmamos em day for night (noite americana) que nos remete ao cinema clássico, mas aquilo é uma “normal” conversa de um miúdo com um espírito. Ou até o encontro com a arara, que é na realidade um conjunto de campos e contracampos entre o miúdo e o animal. 
 
Isso prova de como o Cinema consegue ser um mediador entre mundos, e como estabelecer ligações e ontologias diferentes.
 
Novos projetos? Continuarão a filmar os krahôs?
 
JS – Continuar a viver e mantê-los por perto. A guerra continua, até porque eles são nossos amigos … são família. Ganhamos nome na aldeia, logo temos uma família.
 
RNM – Fazer um filme implica muito de nós, do nosso tempo. Primeiro queremos viver e por isso vamos continuar a filmar os krahôs.
 
A sequência que mais recordo deste filme é quando o Ihjãc vai ao centro de saúde e uma enfermeira, a fim para preencher o formulário, questiona o nome, pelo que o “índio” responde “krahô”. A resposta da enfermeira é imediata: “Krahô? O seu nome de branco“. Neste caso, diria que é uma discriminação entranhada.
Agora se a virarmos para a realidade portuguesa, encontramos um racismo tão inerente que é difícil de combater. Temos casos como os do Bairro Jamaica, no qual o Salaviza integrou a manifestação, mas também na polémica da escola de Matosinhos que decidiu criar uma temática carnavalesca com o blackface
 
JS – O que testemunhamos em Portugal é um racismo estruturado. Tenhos muitos amigos negros que dizem que Portugal é um dos países mais difíceis de combater o racismo, porque este está tão entranhado. Quando um negro se insurge de forma a denunciar um ato racista, todo o país se revolta para desmentir isso como uma criança que fez uma asneira e que jura a pés juntos que nada fez. 
 
Em pleno 2019, ainda temos uma escola que decide celebrar o conceito de “raça”, categoria obsoleta onde até mesmo o mais racista dos racistas deixou de usar. Nessa escola, onde a temática do africano é motivo de festa, estas crianças serão futuros racistas porque são assim ensinadas a normalizar estes atos. Agora a questão é: como podemos desconstruir isto?

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