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Claire Denis: Nem o espaço é a fronteira final para o desejo

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Às voltas com um sanduíche de queijos, fiambre e salada, devorado com a fome de quem gastou um dia inteira a responder perguntas sobre vida inteligente (e inquieta) nas estrelas, Claire Denis recebe o C7nema para uma conversa com um quê de acanhamento, cheia de dedos pela guloseima que sacia seu apetite, e com curiosidade para entender a mirada dos portugueses sobre High life.

Sou fã da ficção científica. Já me perguntaram se gosto de Star Wars e, sim, vi e gosto, embora não considere a franquia uma sci-fi, e, sim, um universo paralelo de aventura. Li muito Asimov, li histórias fantásticas de contactos imediatos. Gosto do desconhecido que a gente não domina”, diz a aclamada diretora francesa, num encontro em Paris, no Rendez-vous Avec Le Cinéma Français, evento realizado de 17 e 21 pela Unifrance.

É longa a carreira dela. E cheia de belas parcerias.

Assistente de direção de mestres como Wim Wenders (em Paris, Texas), Costa-Gavras (em Hanna K.) e Jim Jasmusch (Vencidos Pela Lei), no início de sua carreira, a cineasta parisiense desfruta hoje de um prestígio à altura daquela alcançada pelos realizadores com quem trabalhou: em bíblias cinéfilas como a revista Cahiers du Cinéma, a diretora de 35 Shots de rum (2008) e Nénette et Boni (Leopardo de Ouro no Festival de Locarno, em 1996) merece reverência não apenas pela contribuição que deu às atuais discussões sobre empoderamento feminino – em sua forma libertária de representar as mulheres nos ecrãs – mas pelos debates sociais e raciais que abriu, em filmes de culto como Uma Mulher Em África (2009). Mas até os seus fãs mais ardorosos estranharam quando ela decidiu focar suas atenções no espaço sideral e se arriscar pelas veredas da ficção científica em High Life, um ensaio psicanalítico em forma de excursão pelas estrelas que deu a ela o prémio da crítica da Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci) no Festival de San Sebastián, em setembro. Ainda inédito no Brasil e em Portugal, a longa-metragem foi tratada como a mais fina iguaria do 21º Rendez-vous da Unifrance.

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No trabalho mais ousado da sua carreira, Claire acompanha a jornada de um astronauta (Robert Pattinson, o vampiro romântico de a saga Twilight) e da sua filha bebé numa nave onde os passageiros morreram sob circunstâncias misteriosas, mas que podem estar ligadas aos experiências de fertilização de uma médica (Juliette Binoche). É um sci-fi onde o sexo e as neuroses sexuais contam mais do que a tecnologia, como a realizadora explicou nesta conversa.

Apesar dos filmes de culto 2001 – Uma odisseia no espaço, Solaris e Blade Runner, a ficção científica raramente é filmada por cineastas com um perfil autoral como o seu, famosa por dramas de cunho social, por debates raciais. O que a leva ao sci-fi agora?

Existe alguma coisa mais fascinante do que uma dimensão, como o espaço, da qual pouco conhecemos, ainda, e a qual não podemos alcançar quando queremos? Leio ficção científica desde garota. Isaac Asimov ia comigo para a escola: Eu, robô e os seus outros livros fascinavam-me. Galileu é sci-fi. A questão não é o espaço sideral, mas a condição humana. Tenho curiosidade por saber como as pessoas se comportam num ambiente de silêncio absoluto, de solidão. Mas eu tentei fugir de algo na ficção científica, sobretudo a americana, que me assusta.

O que mais a incomoda na maneira como o género vem sendo explorado?

A associação da sci-fi ao militarismo, ao futuro cheio de soldados, à ideia de que estar no espaço significa conjugar o verbo “conquistar”. Eu não filmo heróis. As personagens aqui estão às voltas com o desejo e com a morte, ou seja, dois tabus. Não há heroísmo ali, nem conquista. Há a perceção de nós mesmos.

O que o silêncio pontua no teu filme?

Às vezes, ele baliza algo que não esconde a nossa fadiga diante da repetição da rotina. Aqui, trabalho numa história sobre pessoas que estão há anos juntas, num só lugar, vendo-se todos dias num mesmo ambiente, numa mesma missão, onde não há possibilidade de novas dramaturgias. Não há motivos para uma pessoa se virar para a outra e perguntar: “O que fez hoje?”. Ela fez o hoje o mesmo que fez nos últimos meses sem mudar nada. Não é por acaso que a personagem vivida por André Benjamin, a certa altura, diz: “Esses nossos corpos juntos tresandam”. É o fedor da mesmice, do confinamento. Podem existir várias dramaturgias diferentes no interior de cada uma daquelas pessoas. Mas isso não se diz com palavras. A câmara diz.

Onde entra nesse filme a dita delicadeza que lhe deu fama?

Tento entender a palavra “família” como um ninho para o drama, seja numa fazenda em África, seja numa nave.

O que a presença de um astro como Robert Pattinson, hoje cada vez mais ligado a pequenas produções, representou para o filme?

A beleza… a beleza de um ator que arrisca. Ele procurou-me. Ele queria estar neste filme. É um filme sobre condenados, sobre pessoas sem vida. Inicialmente, o papel não era dele, e sim de um ator mais velho. Philip Seymour Hoffman (morto em 2014) era a minha ideia inicial, quando o projeto começou. Queria alguém mais velho, que encarnasse a ideia da perda total de laços. Mas Robert, com seu talento imenso, foi capaz de me convencer de que o papel era dele. O papel do condenado que, sozinho no espaço, entre mortos, tem um bebé nas mãos para cuidar. Que vida é essa que nasce ali? E que tabu nasce com ela?

No seu filme anterior, O Meu Belo Sol Interior (Un beau soleil intérieur), exibido na Quinzena de Cannes em 2017, o semiólogo Roland Barthes foi o seu guia para explorar os signos do amor. Que filósofo guiou a excursão pelos signos do espaço neste novo trabalho?

Muita gente tem falando em Kubrick, mas, ainda que eu ame o seu cinema e saiba o quão forte “2001” é, eu segui uma outra via. Não há aqui a dimensão ontológica que se vê em Kubrick. Aurélien Barrau, um astrofísico francês jovem, foi o meu acompanhante. Com base nos estudos dele, fui estudando a ideia de buraco negro, de espaços aparentemente vazios, que nos transportam para dimensões no qual as noções de velocidade e gravidade que nos sustentam são outras.

Filmes de culto como 35 shots de rum (2008) e Uma Mulher Em África (2009) fizeram do seu nome uma referência obrigatória na discussão da representação negra no cinema europeu. E há uma figura central de sabedoria em High Life a quem a senhora confiou a um ator negro, André Benjamin, músico da banda Outkast. De que maneira a representação dos negros mudou neste momento em que as novas gerações de afrodescendentes passam à direção?

É maravilhoso este aumento de artistas negros. Mas eu sempre entrei por esse universo, abordando inclusive o racismo, porque sempre convivi com pessoas negras. É o mundo de onde venho. Tenho raízes ancestrais no Brasil, em Belém do Pará. A questão que me preocupa é o ódio associado à diferença de tons de pele… o ódio que está associado à pobreza ao multiculturalismo. Sempre incluí atores e personagens negros nos meus filmes porque eles integram a minha realidade… é natural… é inato. Agora, discutir o ódio… isso sim é consciente. E racismo é ódio.

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O seu diretor artístico em High Life foi o artista plástico dinamarquês Ólafur Eliasson, famoso por obras de larga escala, como um sol gigante instalado na Tate Modern, em Londres. O que trouxe ele para um experimento narrativo tão intimista quanto a sua sci-fi?

Foi um incentivador, com um olhar muito particular sobre a luz e a cor. Ele queria que eu filmasse tudo no estúdio dele, na Alemanha, mas não havia forma de criar uma nave ali. Mas ele se adaptou ao estúdio onde filmei e trouxe uma luz meio amarelada para a cenografia que me revelou outra percepção do espaço, pela imersão. Este filme foi uma experiência em muitos níveis, sobretudo, sensoriais, pois é uma história de moral, de limites morais.

O que vem a seguir?

Lançar High Life e buscar algo que me inquiete. Escrevi esse guião todo em francês e depois tive parceiros, na minha coprodução americana, que converteram o resto para o inglês. Foi uma investigação sobre o desejo e o interdito.