Sexta-feira, 29 Março

«O Grande Circo Místico»: O picadeiro de um mestre à luz da magia

Enfim chegou o maior espetáculo da terra fértil que é a cabeça de Carlos Diegues aos ecrãs de Portugal: coprodução luso-franco-brasileira, O Grande Circo Místico estreia em Lisboa e arredores com a promessa de defender a poesia e a picardia. Exibido em sessão especial no Festival de Cannes, fora de concurso, a longa-metragem entrou em circuito no Brasil poucas semanas após o seu realizador (autor de crónicas semanais no jornal O Globo) ser eleito imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), a maior instituição de seu país na defesa da Literatura. É um filme sobre um século de alegrias e contratempos sob um picadeiro perfumado de magia. “A História não é um comboio que avança num trilho do qual não pode escapar. Ela é muito mais resultado de acasos e desvios e tropeços inesperados”, diz Diegues. 

De onde vem essa história sobre cem anos na vida de uma família de artistas circenses, cujo patriarca adquire a lona para presentear a sua amada, vivida por Bruna Linzmayer? Há quem diga que o filme é uma adaptação do espectáculo homónimo, com músicas assinadas por Edu Lobo e Chico Buarque, encenado pelo Balé Teatro Guaíra, há 35 anos, com dramaturgia de Naum Alves de Souza. Mas a origem é anterior e remonta a um dos mais respeitados poetas do país, alagoano como Cacá: Jorge Mateus de Lima (1893-1953).

Na génese do ballet de 1983 – cujo sucesso abriu portas para uma temporada nacional de dois anos e gerou um LP com as canções de Chico e Edu e, agora, do filme de Cacá, está o livro A Túnica Inconsútil (1938), que traz entre os seus poemas as aventuras dos trapezistas, palhaços, mágicos e donos do Grande Circo Knieps.

Jorge de Lima é um dos três maiores poetas da língua portuguesa”, defende Cacá Diegues. “O seu ‘Invenção de Orfeu’, por exemplo, é um épico moderno a altura de ‘Os Lusíadas’. Fazer esse filme a partir de um poema dele é retomar uma tradição barroca que identifica a cultura brasileira, uma tradição sufocada pela globalização realista. Leio Jorge de Lima desde a minha adolescência. Por volta dos 18 anos, encontrei o grande poeta e ensaísta Mário Faustino que me ensinou a ler o Jorge de um modo mais profundo e definitivo. Desde então, sou obcecado por ele, sempre a pensar em fazer alguma coisa da obra dele no cinema”.

Cannes se impressionou com a fotografia que Gustavo Hadba preparou para O Grande Circo Místico, saturando a luz aqui, esfumaçando espaços acolá, tudo para traduzir visualmente a panela de pressão de egos e sentimentos onde são cozidas as paixões de uma trupe que tem o galã francês Vincent Cassel como um mágico sedutor. Mariana Ximenes vai interpretar uma das descendentes dele: uma trapezista que tatua a sua fé – e o seu ódio – no corpo. Personagens vão e vem numa trama conduzida por um mestre de cerimónias que parece nunca envelhecer, Celavi, interpretado por Jesuíta Barborsa, traduzindo o misticismo da obra de Jorge, uma das características singulares de sua obra, segundo avalia o poeta Alexei Bueno. 

O Jorge de Lima, cuja obra é muito rica, foi desses poetas que passaram por todos os estilos surgidos na sua época, caso do Cassiano Ricardo. Muito precoce, ele consegue a fama nacional com um soneto, ‘O acendedor de lampiões’, na verdade a versificação de um trecho em prosa de uma crónica de Bilac. Jorge passou, no curso da sua obra muito múltipla, por todas as postulações poéticas da primeira metade do século XX no Brasil, e permanece como um dos maiores poetas brasileiros de qualquer época”, diz Alexei Bueno, prestigiado por seus poemas e por seu trabalho como ensaísta literário, tendo sido curador de eventos na ABL.

Além do universo lírico de Jorge de Lima, O Grande Circo Místico, a 17º longa-metragem de ficção de Diegues, alveja debates que historicamente são onipresentes na obra do cineasta alagoano desde Ganga Zumba (1964), o seu filme de formação. O empoderamento feminino, um dos temas mais discutidos da atualidade, já a figura no universo do cineasta desde os tempos do Cinema Novo, a julgar por cultos como Joanna Francesa (1973) e Xica da Silva (1975). O misticismo inerente ao multiculturalismo nacional, objeto de estudo recorrente na filmografia de Cacá, aparece aqui na figura do centenário Celavi, papel de Jesuíta Barbosa. E há ainda, sob aquele picadeiro, uma reflexão sobre resistência, palavra mais do que necessária no atual cenário político do país, que Diegues avalia nesta entrevista ao C7nema, dada durante a estreia do ‘Circo em sua pátria.

Como o senhor avalia a situação do cinema do seu país neste ano em que a realidade brasileira não teve espaço para fábulas?  

O cinema brasileiro está a viver um momento excecional de quantidade (cerca de 200 filmes por ano) e qualidade (sobretudo pelas novas gerações de cineastas e a sua diversidade). Não temos que nos tornar prisioneiros de uma mensagem ou de um estilo. Pelo contrário. Podemos e devemos experimentar tudo, do naturalismo político ao barroco da tradição cultural brasileira.

O que o seu microcosmos de artistas circenses simboliza acerca da multiplicidade do povo brasileiro? Há lugar para circo no dia a dia deste nosso povo? 

O Circo não é um símbolo da realidade brasileira, é simplesmente a forma original de uma dramaturgia que deu no teatro, na televisão, no cinema e em todas as outras formas de contar uma história humana. Aliás, esse não é propriamente um filme sobre o circo, mas um filme que usa o circo como cenário para contar a história redentora de mulheres que lutam contra as clássicas interdições masculinas. Como não podia deixar de ser, o poema de Jorge de Lima é fiel a isso nas circunstâncias do Brasil. O filme não podia deixar de ser a mesma coisa.

Quais são seus planos para 2019?

Fazer outro filme, o mais depressa que eu puder. É disso que eu gosto, vivo pra isso.

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