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Utoya, 22 de Julho: “A extrema direita é a maior ameaça à democracia”, diz Erik Poppe

Vai estrear nos cinemas portugueses Utoya, 22 de Julho, um filme em tempo real – e constituído por um plano sequência de 72 minutos – sobre o massacre perpetrado pelo terrorista de extrema direita, Anders Behring Breivik, a 22 de julho de 2011.

O realizador do filme, Erik Poppe, explicou-nos os meandros deste projeto que contou com o apoio dos sobreviventes. Poppe, conhecido também por filmes como Águas Agitadas (2008), Mil Vezes Boa Noite (2013) e A Escolha do Rei (2016), falou-nos da sua infância no Porto, deu-nos a sua opinião sobre o filme de Paul Greengrass sobre o mesmo tema, falou da sua visão de Cinema Vs Streaming e explicou-nos que tem dois projetos na agenda, um deles em torno do pintor expressionista norueguês Edvard Munch – eternamente conhecido por O Grito e por abordar nos seus trabalhos temas ligados aos sentimentos e às tragédias humanas.

Aqui ficam as suas palavras…

Li que cresceu em Portugal, como foi essa experiência?

Fui criado em Portugal na década de 1960 no Porto, eu andava na British School e por isso, infelizmente, não aprendi muito português. Mas tenho memórias muito intensas desse tempo, pois quando és um miúdo e vives aqui durante uns anos, sentes como se fosse toda a tua vida. Por isso, quando voltamos a casa, penso que em 1970, cheguei à Noruega a sentir-me meio português. E desde esse tempo que tenho muitas sensações por Portugal. Acho que a Noruega e Portugal têm muito em comum e estão na mesma posição, ou seja, são pequenos países ligados ao mar, que partiram para explorar o mundo. Sinto-me orgulhoso de ter sido criado aqui.

Por isso, está contente de regressar cá?

Sim, sem dúvida. E digo mais. Os cheiros, quando ando pelas ruas é como se me recordasse deles.

Um regresso à infância, portanto…

Sim e há certos odores que só existem aqui…

Pegando agora no seu filme, que me agradou, embora seja algo difícil de dizer dado o tema, quando começou a pensar em o desenvolver?

Mais ou menos há três anos. O atentado ocorreu há cerca de 7 anos e ao longo dos primeiros anos após os eventos senti que o foco do que aconteceu começou a dissipar-se. Provavelmente nunca iríamos perceber o que aconteceu e o que aquelas pessoas passaram. Até se começou a pensar que o perpetrador do massacre [Breivik] era apenas um tipo doido. Estávamos a perder o foco que isto foi um ato da extrema direita, que foi um ataque político que expressava o lado extremo da expansão da direita por toda a Europa. Eu estava a observar isso e as vítimas e os representantes familiares dos falecidos também. Quando eles descobriram que eu estava a ponderar fazer um projeto sobre o massacre, contactaram-me e perguntaram se podiam me ajudar de alguma forma, de maneira a que eu fizesse um filme sobre o tema.

Passei o ano seguinte a analisar e a ver se era possível fazer esse filme e a estudar as questões éticas em torno dele. Será que era demasiado cedo para fazer o filme? Com o apoio deles e os seus pedidos, quis avançar. Quem mais, senão eles, para poderem dizer se era ou não demasiado cedo para fazer um filme sobre isso. Quando são eles a dizer que o filme tem de ser feito como parte do seu processo de cura terapêutica e para que ninguém esqueça o que aconteceu, a questão ética ficou clarificada.

Sempre senti a necessidade de os trazer comigo neste projeto. Eu precisava do seu apoio, pois para contar esta história teria de ser o mais verdadeiro possível do que aconteceu, e não fazer uma versão dos factos como Hollywood. Com isto, decidi juntar um grupo de sobreviventes que me seguiram durante todo o processo. Depois passei um ano a trabalhar no guião, através de entrevistas com os sobreviventes, e decidi avançar com uma ficcionalização da história baseada em tudo o que sabiamos do assunto – o que poderá ser a forma mais verdadeira de relatar o que aconteceu, em vez de mostrar a tua história, ou uma outra história. Este filme tenta captar todas as histórias.

Podemos dizer que temos uma personagem que resume tudo o que aconteceu?

Exato(…) É interessante, eu discuti o tema depois do filme estrear. Seria um documentário ou o filme que a Netflix estava a preparar a melhor forma de apresentar o que se passou de forma mais verdadeira. Segundo os sobreviventes, esta história é a mais honesta na apresentação daquilo que aconteceu. Por isso, às vezes, a ficção pode ser mais verdadeira que os documentários e dar uma vista mais alargada do que aconteceu.

Viu o filme da Netflix? O que achou dele?

Lamento dizer mas… eles ficcionalizaram demasiado E deram muito tempo de antena ao perpetrador do massacre sem questionar o que ele diz. Mais uma vez, ele está a promover o seu discurso de ódio. Isso é algo que deve ser questionado. Primeiro, a última hora do filme não é verdadeira. É algo inventado, logo não estamos na verdadeira história. Creio que devia perguntar aos sobreviventes o que eles pensam. Eles condenam o filme.

Condenam o filme?

Sim, eles não gostaram de todo dele. É mesmo uma versão à Hollywood. E mesmo que eu respeite muito o Paul Greengrass, que eu acho que é um grande cineasta, esta é a primeira vez na sua carreira em que sinto que os produtores levaram a melhor sobre ele.

Outro problema é que eles também nos “roubaram” o título. Nós estreamos em Berlim com o título Utøya: July 22 e eles estrearam depois com o título 22 de Julho. Por isso, as pessoas confundem os filmes. Muita gente pensa que o nosso filme é o da Netflix e então não vão aos cinemas porque podem ver em casa. Isso é desastroso.

Os sobreviventes, as suas famílias, têm também essa preocupação. Este filme, o nosso filme, nunca vai ser exibido na Netflix, pois eles têm o seu, e este conta uma história totalmente diferente.

Você escolheu nunca mostrar o Anders Breivik. Aliás, só o vemos uma vez no topo de um penhasco a disparar para baixo. Foi um decisão pessoal de forma a focar-se apenas nas vítimas?

Sim, eu fiz isso de forma deliberada. Apenas o mostrei por breves instantes pois queria focar-me nas vítimas. Eu não tentei evitar mostrá-lo, mas antes mostrá-lo da maneira como eles o viram, como o ouviram, através da voz ou do som dos tiros. Deliberadamente quis desafiar a audiência a verem um incidente como este de outra forma.

Quase todos os filmes sobre massacres são em torno de quem os executa. Como poderia eu mostrar o filme inteiramente sob o ponto de vista das vítimas? Isto podia nos levar a filmar a raiva, no qual que eu provoco a audiência a debater o que podemos fazer para evitar isto de acontecer outra vez. Até porque o outro estilo de filmes não tem realmente mexido connosco. Por isso, tomei a decisão.

O filme também é crítico em relação à reacção tardia das autoridades. Essas críticas levaram a um debate nacional sobre o tema?

Sim, mas principalmente porque as pessoas nunca conseguiram perceber como durou 72 minutos até que as autoridades travassem este homem. Ou seja, durante 72 minutos ele matou, sem ninguém o parar, estes miúdos. Eu entrevistei mais de 40 sobreviventes para criar a história e quando escrevi o filme quis apresentar o tempo como uma personagem. Hoje em dia podemos mostrar tudo nos filmes, provavelmente a exceção é o tempo, algo que é difícil de mostrar. Essa foi a razão porque optei por captar tudo num único take. Ver se conseguia expressar o tempo e, ao fazer isso, lembrar o público o que são 72 minutos. Claro que isso provocou uma reação: porque é que a polícia não atuou antes?

Mas ao mesmo tempo, a opção de um único take, e havendo dois filmes sobre o mesmo tema, não fará  com que este filme seja conhecido mais pela técnica (o filme do único take) do que pelo assunto? Não acha que isso pode ser um problema?

Sim, isso poderia ser um problema se o tivéssemos frisado no marketing ao nosso filme. Antes de vocês jornalistas falarem dessa questão do único take, eu nunca tinha pensado dessa forma no tema. E principalmente porque de certa maneira proíbi os distribuidores de usarem isso na promoção durante os primeiros seis meses. Agora já passaram esses seis meses e já surgiu um trailer – até para o distinguir do filme da Netflix.

Para mim, essa opção era a única maneira de expressar o tempo e dar à audiência a sensação de estarem lá. Era a ferramenta que podia usar. E não tenho sentido junto das pessoas que falo a sensação que o assunto perde força por causa da técnica se destacar. Na verdade, acho que a técnica eleva o assunto, os tópicos e aquilo que o filme procura atingir, que é fazer-te passar momentos difíceis de ver.

Filmou com câmaras pequenas ou telemóveis?

Não, sempre com câmaras enormes. Foi um feito, conseguido pelo diretor de fotografia.

Mas podia ter usado até um iPhone, por exemplo. Alguns cineastas estão a usá-los cada vez mais.

Sim, podia, mas senti que as câmaras seriam muito leves, provavelmente nos cinemas a vermos o filme ficariamos enjoados da câmara a tremer. Eu também não queria que a câmara tremesse…

Como nos filmes do Greengrass… (risos)

Exato. Eu segui uma via oposta, a de manter a câmara o mais estática possível, mesmo a correr. Curiosamente, ele (diretor de fotografia) tinha isso em mente, mas eu decidi de outra forma.

E como foi o trabalho com os atores e como os preparou para um take enorme.

Essencialmente foi através de muitos ensaios, durante três meses. Durante seis meses procurei talentos, atores, pois se não os encontrasse, não teria filme. Precisava de alguém que conseguisse fazer tudo o que o filme mostra em 94 minutos. O momento decisivo foi quando encontrei a Andrea Berntzen e consegui a luz verde para avançar com o projeto. Esse momento foi aquele em que pensamos que poderíamos mesmo fazer o filme de forma a que ele funcionasse.

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Andrea Berntzen

E nunca ponderou, em nenhum momento, fazer algo como o Clint Eastwood no 15:17 Destino Paris, ou seja, usar personagens reais como atores.

Seria impossível, pois eles não conseguiriam passar por aquilo tudo outra vez. Apenas alguns sobreviventes conseguiram regressar à ilha, para ajudar-me e ver como as coisas estavam a ser feitas. Mas nenhum deles seria capaz de estar a frente das câmaras e reviver aquilo.

Sim, e sei que colocou avisos em toda a região a informar que iam ser lá feitas filmagens e que as pessoas não deveriam se assustar se ouvissem lá disparos…

Sim e tive sempre psicólogos nas filmagens perto dos sobreviventes. Não usei o som das balas durante os 3 meses de ensaios, mas todos sabiam que no primeiro dia das filmagens haveria o som das balas. Eu também não queria que eles “atuassem”, queria que eles vivessem o momento e reagissem naturalmente. Por isso mesmo, essa foi a razão porque precisei de 3 meses de ensaios para explicar todos os detalhes.

Como cineasta que fez um filme sobre um atentado perpetrado pela extrema direita, como vê o crescimento desta na Europa e no Mundo?

Creio que são a maior ameaça à democracia, por isso é extremamente importante provocar nas pessoas um debate que previna algo assim de voltar a acontecer. Essa foi uma das principais razões porque eu e os sobreviventes quisemos fazer este filme. Este é um filme sobre aquelas palavras, aquele discurso de ódio que está às claras na internet. Não é algo que esteja muito distante. Alguém pegou nessas palavras e transformou em atos que ceifaram a vida a 77 pessoas, 69 dos quais muito jovens. Temos de levar essas palavras e esse discurso de ódio de forma muito séria. Não são apenas palavras, são algo que nos desafia. E queríamos mostrar o resultado que pode sair dessas palavras.

Mesmo assim, e infelizmente, na Noruega tivemos este incidente, o maior ataque à democracia desde a 2ª Guerra Mundial, o maior atentado em solo europeu desde a 2ª Guerra Mundial. Parece-me que ainda não conseguimos ter essa conversa, esse debate. Nós olhamos para as coisas e para esse crescimento da extrema direita como se fosse apenas um número a crescer que está ali, que não levamos a sério. E o pior é que muitos políticos de extrema direita na Europa estão a usar as mesmas palavras [que Breivik leu] para os seus discursos. Por isso, acho que isto representa para todos nós um enorme desafio.

Tem algum novo projeto?

Sim, mas é complicado falar nele neste momento.

A certo ponto, creio que em 2015, falou-se que ia fazer um filme em torno do Edvard Munch. Como está esse projeto?

Sim, ainda estou, mas esse é outro projeto, para 2020.

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No início da sua carreira filmou para a TV a série Brigaden. Pondera regressar ao mundo da TV, agora que vivemos este período de séries atrás de séries com a Netflix, a Amazon e a HBO?

Eu realmente não me importo nada de trabalhar para a TV, mas temos de lutar por manter os grandes talentos no Cinema e não os perder para a TV. Também depende do projeto, mas eu gosto de produções com um princípio, um meio e um fim. Tenho a sensação que existem demasiadas séries de TV hoje em dia.

Eu recebi propostas de séries, mas recusei-as, não porque sou contra elas mas porque não achei que tinham boas ideias, um bom suporte. Também sinto que controlarei melhor os filmes, do que se trabalhar numa série para um gigante como a Netflix. O melhor exemplo disso, nem é uma série, é o filme do Paul Greengrass. Eu respeito-o imenso e foi a primeira vez que senti que ele submeteu-se ao que a produção queria. Eles mudaram tanta coisa para este filme que o tornaram vulgar. Sente-se que é algo de outra pessoa e acredito que Greengrass tinha outras ideias. Acho que ele queria fazer um filme verdadeiro [sobre Utoya], mas penso que foi abafado por um gigante. Se eu quero trabalhar com esta gente? Provavelmente, não.

E do ponto de vista de Cinema Vs Streaming, acha que o Streaming vai matar o cinema?

Não. Eu não temo o Streaming, até porque os números dos cinemas estão ainda bastante elevados. Bem, provavelmente vai dizer que são os blockbusters que fazem esses números elevados, enquanto os pequenos filmes aparentemente não se comportam tão bem nas salas. Isso é um desafio. Mas também assistimos a uma pequena revolução, pois estão a aparecer cinemas alternativos, pelo menos no norte da Europa, os quais exibem esses filmes mais pequenos e estão a conseguir uma audiência de jovens, de pessoas da sua idade [nos 40’s]. Há tantos cinemas assim no Reino Unido, na Alemanha, em França.

Vejo que há mais opções, não necessariamente mais filmes. Sim, se fores criança, provavelmente é mais conveniente ver os filmes em casa, mas se fores maior vais ao cinema e participas numa experiência conjunta. Por isso, não temo pelos filmes nos cinemas, não temo o streaming, mas preciso de saber para o que estou a trabalhar. Eu, pessoalmente, ainda trabalho para a experiência fílmica numa sala de cinema.

Utoya, The King’s Choice. Os seus últimos filmes têm tido uma base real, vai continuar nesse registo?

Eu gosto do mix…

Então o tal projeto do qual não quer falar não é baseado numa história real, já que [gosta de misturar] e tem o filme do Edvard Munch na agenda?

Esse filme será controverso. Não quero falar dele porque estamos ainda a reunir o financiamento, é possível que existam novidades por altura do Festival de Berlim, em fevereiro. È provável que o anunciemos lá. Depende…