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Bruno Nogueira: «A televisão continua com aquela lengalenga que vai ao encontro do que o público quer»

Uma atriz sobretudo dramática que perde o dom de chorar. Resultado, uma inversão de marcha na sua carreira então presa a arquétipos e uma busca pelo que realmente lhe faz feliz. Esta é a resumida premissa de Sara, a série de Marco Martins que promete abalar toda a nossa perspetiva de ficção à portuguesa no pequeno ecrã e demonstrar as versáteis capacidades de Beatriz Batarda, que à imagem da protagonista tem vindo a ser “acorrentada” a rótulos.

Uma proposta deliciosamente satírica e astuta que veio originalmente da mente de Bruno Nogueira. O comediante e ator falou com o C7nema sobre este projeto e de que maneira ele se insere no panorama audiovisual português.

Sendo o autor da ideia original, gostaria de perguntar como esta surgiu?

Surgiu da minha realidade e da realidade que conhecia da Beatriz, uma atriz que facilmente cai no estereotipo, reduzida ao mesmo tipo de papéis. Sempre que a convidavam, não era para encenar “casamentos felizes”, “famílias felizes”, mas sim desempenhar algo trágico ou coisa que pareça. Pensava muito nesse mecanismo de uma atriz como a Beatriz que de um dia para o outro não conseguia mais chorar. O que aconteceria a esse tipo de atriz dramática se fosse lhe retirada a sua mais preciosa ferramenta de trabalho, e com isso a procura de um lado mais feliz na sua vida. Então imaginei essa viagem, e imaginei a partir da própria Beatriz.

Em certo modo, Sara é sobre a Beatriz Batarda?

Só o facto de ser uma atriz e ficar quase limitada aos papéis dramáticos, o resto é somente ficção. A sua jornada, famílias, relações, amigos, tudo é fruto da ficção.

Portanto, foi através dela que construiu a base desta série que funciona no todo como uma crítica satírica ao mundo do Audiovisual e do Entretenimento do nosso panorama?

Sim, mas mais que isso, todo este processo de conceção obrigou-me a pensar sobre o Cinema, Teatro e até mesmo Televisão, no que leva um ator a fazer determinada coisa, muitas vezes tendo motivação financeira, outra apenas por curiosidade profissional, ou é uma fase da vida em que se procura o que é mais seguro. Sempre tive esta ideia mesmo quando estava fora do mundo audiovisual, agora que estou dentro apercebo-me que a realidade é para lá disso. Depois só me interessava brincar com a realidade da situação, com aquilo que a Beatriz e o Marco pensavam que era. Depois juntei uma essência forte e eficaz daquilo que é a nossa visão sobre o que são estes meios nos dias de hoje.

Mas Sara foi inicialmente pensado como uma série ou um filme?

Numa série. Foi sempre pensado como tal.

Mas diria que existe uma linguagem muito cinematográfica em Sara.

Sim, foi parte do Marco [Martins], que entrou no projeto a partir de uma simples conversa de quotidiano. “O que estás a fazer? O que andas a fazer? Projetos futuros?”, falei-lhe desta ideia e segundo as suas próprias palavras, ele achou “perfeito”. Assim, após a sua entrada, esta ideia deixou de ser minha e passou a ser “nossa”. Foi quase um trabalho em família.

E como pensa que reagirão os espectadores em relação a Sara?

Não sei. Acho que toca com várias tópicos, mas sobretudo vai muito ao encontro da perceção que os espectadores têm, outros informaram um pouco mais, mas um caso é um caso. Não sei realmente como reagirão. Isto é uma coisa muito egoísta de dizer, mas Sara foi concebido como aquilo que eu gostaria de ver na televisão neste momento. Por isso como última análise, isto foi para nós vermos. Foi um projeto fiel aquilo que pretendíamos e que gostaríamos de ver, obviamente tendo em conta que isto estava direcionado para televisão.

Mas é um projeto arriscado para a nossa televisão, diria que é uma série construída a partir de uma metalinguagem bastante própria e incisiva.

Vejamos, a ideia era de posicionarmos de fora a assistir a isto tudo. Portanto, tem várias camadas. Dando exemplo, colocamos a Rita Blanco a criticar quem faça novelas e anúncios a bancos, enquanto sabemos que a própria atriz já fez isso tudo. A série retrata um pouco o Mundo de cada um dos envolvidos, e mesmo sendo, em alguns casos, feridas nossas, só o facto de avançarmos com essas representações estamos em certa parte a exorcizar os nossos pontos fracos.

Tendo como base o conteúdo, o contexto e as “farpas” que Sara constantemente lança, gostaria de perguntar como vê a atual produção cinematográfica e televisiva em Portugal?

Cada vez mais o Cinema Português vem ao encontro com o público e durante muito tempo estes dois fatores estavam intrinsecamente desencontrados. O público não via o nosso cinema, guiando por palavras-chaves como “filmes longos e chatos” (e verdade é que existiam imensos longos e chatos). Hoje em dia, uma coisa que ajuda imenso o cinema português, felizmente, é o reconhecimento estrangeiro e desta nova geração de realizadores que têm uma maior proximidade com o público. Por isso, sou da opinião que o cinema português está melhor não só por essa cumplicidade com os espectadores, mas até pelos espectadores que fizeram um esforço para entender a sua linguagem.

A televisão … bem … tendo em conta a minha experiência, uma ideia passa por imensas transformações até chegar ao produto final. Veja-se o caso de Sara, a ideia é originalmente minha e foi gradualmente transformada em uma outra coisa com as contribuições de Marco Martins, Beatriz Batarda, entre outros. O que restou dos primeiros pensamentos foi nada do que está ali. Julgo que em 90% das séries nacionais, as ideias, que podem ser boa, são submetidas a todo um conjunto de intervenções, passando pelos executivos a produtores, “vamos meter umas gajas nesta cena aqui”, ou o diretor do canal, “epá, o que ficava bem aqui era aquele gajo que agora está na ribalta”. Portanto, a ideia com todos estes contágios misturados resulta numa … papa … perdeu-se no caminho.

Acho que temos ótimos autores em Portugal, mas a ideia original perde-se no trajeto e aquilo que presenciamos no ecrã não é, nem tão pouco aquilo que originalmente seria. De resto, não acho que está num caminho brilhante. A televisão continua com aquela lengalenga que vai ao encontro do que o público quer, e por vezes isso é discutível. Para vir para cá, passei por um acidente na A5. Não havia trânsito, mas os carros paravam para ver os destroços. Naquele momento, o que público pretendia era ver o acidente, por isso julgo que essa politica “das intenções do público” não seja de todo verdade.

Um canal privado tem outras obrigações para além de mostrar o “acidente”, e a RTP, enquanto pública, tem o papel fundamental que é o respeito pelos atores e cumprir essa preservação autoral, assim como a valorização dessas mesmas.

Novos projetos?

Penso voltar à televisão, por enquanto não é o momento certo, estou a espera de ideias e isso leva o seu tempo. Contudo, vou regressar a algo que tinha saudades e que tem dedicada paixão que é o stand-up comedy. Ando em experiências e testes de material e em novembro arrancarei com uma tournée.