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Jean-Paul Rappeneau em Lisboa: “estou a reviver os momentos de há 30 anos”

Atualmente com 86 anos, o cineasta e presentemente vice-presidente da Cinemateca Francesa, Jean-Paul Rappeneau, é um dos nomes mais sonantes a marcar presença na Festa do Cinema Francês, evento que abre com um dos seus filmes mais amados, o já clássico do cinema gaulês Cyrano de Bergerac. “Cheguei ontem a Lisboa para apresentar o filme restaurado a um público diferente (…) isto faz-me regressar ao passado, estou a reviver os momentos de há 30 anos (…) estou muito contente“, disse-nos Rappeneau, visivelmente emocionado e com uma certa nostalgia.

Foi num hotel lisboeta que nos encontramos com ele e discutimos a sua carreira, que já se estende para além das cinco décadas, mas conta apenas com oito longas-metragens da sua autoria. Perfeccionismo e longa ponderação quando se envolve nos projetos? Sim, mas já lá vamos…

Influências na carreira

O seu início no Cinema foi como assistente, colaborando em curtas curtas-metragens de Edouard Molinaro, passando depois para a escrita de guiões e trabalhando em 1958 em Os Três Mosqueteiros de Jacques Becker, projeto que terminou com a morte do diretor. Depois disso, colaborou com Louis Malle (Zazie no Metro) e Philippe de Broca (O Homem do Rio).


O Homem do Rio

Não assume grande influência destes cineastas na sua formação como realizador, afirmando que acima de tudo foram as comédias americanas e filmes de nomes como Lubitsch ou Capra que marcaram a sua juventude cinéfila: “Veja-se o Escândalo no Castelo (1966), o meu primeiro filme. A minha inspiração criei-a eu mesmo (risos). A minha inspiração na época foram as coisas que amei nos meus tempos de cinefilia, como as coisas que via nos cineclubes, e aí sempre esteve muito presente o cinema americano. Toda a gente pensava assim. A Nouvelle Vague, os grupos do Truffaut e Godard preferiam o cinema americano. Eles detestavam os cineastas franceses e, naquilo que me diz respeito, não gostava do cinema francês da época, com exceção do Jacques Becker“.

Em 1975 assinou o argumento e realização de Le Sauvage, filme  – que também será exibido na Festa do Cinema Francês – que iniciou um percurso de “autor” (ele não gosta muito da mitologia por trás do termo) até aos dias que correm, esperando para o ano filmar um novo projeto, cujo guião já está praticamente acabado mas do qual não quer dar detalhes por “superstição“.


Le Sauvage

O Analógico e o Digital no mundo do cinema

Evocando Spielberg e Scorsese, Rappeneau lembra as conversas iniciais sobre as filmagens em 35mm e digitais: “Inicialmente todos pensávamos que o digital era um inimigo, mas derradeiramente, em França, e penso que também aqui, deixou de haver uma aversão“. Pegando no exemplo da restauração de Cyrano, o cineasta dá a entender que o digital permite que diretores de fotografia perfeccionistas como Pierre Lhomme pudessem aperfeiçoar o seu trabalho: “ele batalhou durante anos para me convencer a restaurar e digitalizar o filme (…) eu só perguntava, “porquê?”. Ele dizia que quanto mais via o filme, mais o queria aperfeiçoar“.

Curiosamente, Rappeneau é também um perfeccionista, sendo essa uma das razões porque dedica tanto tempo entre projetos a prepará-los. “Sim, quando trabalhamos os dois os produtores dizem sempre, “onde é que me meti“, responde entre risos e evocamesmo uma produção na Ásia Central que nunca avançou por causa disso.

Cyrano de Bergerac

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Na sua cinematografia, é impossível escapar a Cyrano de Bergerac, filme que inicialmente teve muitas reservas em concretizar, até porque teria um outro projeto que considerava mais relevante, o qual nunca acabou por concretizar. Seja como for, o filme revelou-se um triunfo, tendo a sua versão restaurada sido apresentada este ano em Cannes e chegando agora a Lisboa, onde depois da antestreia na Festa do Cinema Francês será exibida comercialmente.

Não mudava nada“, disse-nos quando questionado se alteraria qualquer coisa em Cyrano se o filmasse nos dias de hoje, reconhecendo que para a preparação da obra assistiu na Cinemateca Suíça a todas as versões da história da personagem que já tinham chegado ao cinema, destacando a de 1922 assinada por Augusto Genina. “Queria fazer uma espécie de ‘Ópera verbal’“, reconhecendo que o objetivo era conseguir um trabalho forte na imagem e nas palavras, longe da estaticidade das produções teatrais, mas respeitando o texto.

Trabalhar com Gérard Depardieu

Dentro de uns dias vamos apresentar a versão restaurada na Cinemateca Francesa e a grande questão é: ‘Será que ele (Depardieu) vai aparecer?’“. (risos). É assim que Rappeneau responde inicialmente à nossa questão de como é trabalhar com Gérard Depardieu, o qual admite já não ver há muito tempo. Reconhecendo que nas filmagens o ator é como um irmão para ele (frase que já tinha dito numa entrevista à France Inter em 2012), Rappeneau evoca o seu profissionalismo – trabalhou com ele em duas outras obras – mas afirma que o ator recusa-se a falar com o cineasta das personagens que vai interpretar, pelo menos antes das filmagens. “Quando foi o Cyrano eu tentava falar com ele da personagem. Ele dizia sempre: ‘Ah sim, nós depois vemos isso’ (risos)“.

Contando um episódio com Depardieu, Rappeneau mostra o quão terra-a-terra ele é, pois consegue estar ao telefone, interromper a chamada, filmar uma cena, e quando ouve o “corta” retoma a chamada como se nada tivesse passado: “Para ele conta o ‘atuar’, depois retoma à vida real num segundo“, diz entre risos.

E sim, é verdade. Depardieu não gosta de decorar as falas e aquando das filmagens de Boa Viagem (na imagema cima) em 2003, onde tinha pouco texto para memorizar, Rappeneau relembra como Isabel Adjani chegou a segurar um papel com as falas dele, para que Depardieu as lesse enquanto filmava.

Os Oscars: Cyrano de Bergerac e  La Doleur

O facto de Cyrano de Bergerac ter sido nomeado a cinco Óscares em 1991 – incluindo o de Melhor Filme Estrangeiro – fez-nos questionar Rappeneau sobre o candidato francês este ano: La Douleur (A Dor), de Emmanuel Finkiel.

O cineasta concorda com a escolha e diz que gostou bastante do filme, sublinhando o fabuloso trabalho da protagonista, Melanie Thierry, que interpreta a jovem Marguerite Duras na sua interminável espera pelo marido, retido num campo de concentração nazi. Mas embora concordando com a seleção, o realizador mostra-se reservado, relembrando que existe mais em jogo que a qualidade, dando Cyrano como exemplo. Com cinco indicações, o filme viria a perder nesse ano o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro para Journey of Hope, uma obra de Xavier Koller que nos EUA era distribuído pela Miramax de Harvey Weinstein.

Voltando atrás no tempo, Rappeneau recorda-se que nas semanas críticas de promoção ao filme – e de votação dos membros – um jornal norte-americano pegou numa entrevista antiga de Depardieu onde ele reconhecia que quando era pré-adolescente tinha assistido a uma violação – quando ainda vivia na província. “Acabou“, pensou Rappeneau, recordando a sua reação. Na verdade, ele sabia que com essa peça jornalística o filme seria certamente prejudicado na votação.

 

As novas plataformas e o futuro do cinema

O tema das novas plataformas, como a Netflix e a Amazon, é algo que acompanha o dia a dia do realizador, não fosse ele vice-presidente da Cinemateca Francesa. “É uma questão difícil“, diz, pegando no exemplo de Roma de Alfonso Cuarón: “As pessoas da Netflix falaram connosco, não sei quem são os produtores, e propuseram-nos uma grande projeção na Cinemateca Francesa, com o Cuarón presente. Na nossa reunião abordamos isso, ‘Um filme Netflix na Cinemateca?’.  Derradeiramente recusamos, por respeito aos nossos amigos exibidores das salas francesas (…) existe uma união sagrada de proteção ao cinema nacional que vem desde a 2ª Guerra Mundial (…) Os proprietários das salas fazem uma grande resistência às plataformas (…) e eu sei por quê: O Roma não será exibido em nenhuma sala francesa, só será exibida na Netflix (é a política deles).


Roma, de Alfonso Cuarón

Por outro lado, Bertrand Tavernier, o meu amigo Bertrand, que tem um grande papel na história do cinema francês, vai  finalmente – espero eu – filmar um projeto americano em inglês, o seu segundo, com a produção da Amazon. Bem, se Tavernier empatiza com o ‘inimigo’…”, diz Rappeneau com mais risos à mistura. O Cineasta reconhece ainda que está cada vez mais difícil – até para ele – encontrar financiamento para a produção de filmes: “Houve bastantes fracassos [no cinema Francês] no ano passado. Culpam o campeonato do mundo (risos)…. Se essa (plataformas) forem a maneira de encontrar o dinheiro para os projetos, certamente muitos cineastas vão questionar-se sobre o tema…

 

Filmes da Secção O PADRINHO, exibidos na Festa do Cinema Francês

• LA VIE DE CHÂTEAU com Philippe Noiret, Catherine Deneuve, Pierre Brasseur

• LE SAUVAGE com Catherine Deneuve, Yves Montand

• BON VOYAGE  com Gérard Depardieu, Isabelle Adjani, Virginie Ledoyen, Yvan Attal

• BELLES FAMILLES com Gilles Lellouche, Karin Viard, Mathieu Amalric