Quinta-feira, 28 Março

A gloriosa história do cinema italiano: uma conversa com o historiador Oreste Sacchelli


Oreste Sacchelli |© Roni Nunes 

O cinema italiano vive. Em Lisboa a Festa do Cinema Italiano decorre entre 4 e 12 de abril – exibindo mais de 50 filmes. Descontadas as obras que compõem a Retrospetiva dedicada a Marco Ferreri, o restante inclui obras recentes. Sobre estes trabalhos, o peso de uma História enorme.

O C7nema teve o privilégio de uma longa conversa, repleta de generosidade e sentido de humor, com o crítico e historiador Oreste Sacchelli. Com várias biografias lançadas e um amplo currículo académico, Sacchelli é o diretor artístico do Festival de Villerupt, que já soma 40 edições e é a maior montra do cinema italiano em França – país onde é considerado uma das maiores autoridades do assunto.

O resultado foi um amplo afresco sobre as glórias e tormentas de um país onde sempre se esbanjou talento, seja em cinema de género ou de arte, seja nos sucessos de público ou nos achados de vanguarda.

Todavia, a ideia aqui foi recuperar memórias de épocas pouco óbvias. Os trechos da entrevista selecionados para a edição final focaram-se, principalmente, naquilo que é menos conhecido. Se o neorrealismo acabou por ser incontornável (a menção, mesmo assim, é breve), o período extraordinário dos anos 60 e 70, responsável por muitos dos mais belos filmes já feitos, ficou de fora. Para efeitos de fidelidade temática, mantiveram-se os títulos originais dos filmes citados.

 

Antes dos americanos: o grande épico italiano


Cabíria (1914), um dos primeiros grandes espetáculos italianos

Tudo começou por uma vocação para o monumental. David W. Griffith esteve entre as primeiras almas a ficarem fascinadas com espetáculos como Ultimi Giorgi di Pompei (1908), Inferno (1911), ou Quo Vadis? (1913), entre outros – obras monumentais que chegavam a levar três anos para serem finalizadas. Nestes tempos, os italianos circulavam livremente no mercado americano. Foi uma época feliz para a sua indústria, que seria destruída a partir de 1915 durante a 1ª Guerra Mundial antes de culminar com um grande clássico, Cabíria (na imagem acima).

Diz Sacchelli: “‘Cabíria’ é importantíssimo e foi escrito por um dos grandes poetas da época, Gabriele d’Annunzio. Havia essa capacidade enorme de montar um espetáculo com coisas incríveis, como elefantes“. Nesta altura vários centros de produção competiam em toda a Itália. “Quando a indústria entra em crise e tudo conflui para Roma, toda esse profissionalismo, esse modo de fazer cinema se fragmenta. Nos anos 20 perdem-se os mercados e pouco ou quase nada sobra“.

 

O italiano que canta e o “telefone branco”


Sipione o Africano (1936), os italianos aperfeiçoam o espetáculo

A indústria entra num estado vegetativo e a chegada do cinema sonoro não ajuda. No entanto, um persistente empresário, Stefano Pittaluga, que havia açambarcado os restos de tudo o que havia soçobrado nos anos 20, logrou convencer o governo fascista a apoiar o cinema no início dos anos 30 – processo atrapalhado com a sua morte prematura. “Basicamente quando os italianos assistiram ‘O Cantor de Jazz’ lembraram-se logo das possibilidades que poderiam vir de um ‘italiano que canta‘”, brinca Sacchelli.

Assim, Mussolini apoiou na construção de estúdios e até enviou o seu genro negociar na América restrições ao número de filmes exportados para a Itália, tal como o reinvestimento destes filmes em produção local. As boas relações acabaria, no entanto, com a Guerra da Etiópia (1936). Mas, como lembra o historiador, não vinha do governo do Il Duce um cheque em branco. “Eles propuseram-se a ajudar, mas a intenção era produzir filmes para distrair as massas, não para educá-las”.

Um dos produtos marcantes desta política seriam os filmes do chamado “telefoni bianchi” (telefone branco) – alcunha pejorativa criada mais tarde para designar um tipo de comédia ligeira que grassou ao longo da década.

 

De volta ao espetáculo


Un Pilota Ritorna (1942): aventuras bélicas

Duas décadas de autoritarismo fascista, com as suas guerras, assassinatos, intolerância e torturas, deixaram marcas suficientes para que fossem odiados quando tudo acaba sob as ruínas dramáticas da 2ª Guerra Mundial. No campo cinematográfico, no entanto, as bases do neorrealismo e da indústria dos anos 50 vem desta era negra.

O Festival de Veneza surgiu em 1932 e a mítica Cinecittá começa a operar em 1937. O próprio filho de Mussolini, Vittorio, andou metido em novos empreendimentos, como o desenvolvimento do Centro Sperimental di Cinematografia e de revistas de crítica importantes, como a Bianco i Neri, para a qual futuros mestres como Luchino Visconti escreviam. “Foi uma política inteligente“, analisa o historiador. “Criaram uma escola onde se pudesse aprender a fazer cinema e, do outro lado da rua, podiam pôr aquilo tudo em prática“.

Numa altura em que Hollywood aperfeiçoava-se como máquina de propaganda, aplicar este termo pejorativo para nivelar por baixo a produção italiana do período não faz muito sentido. “Claro que uma obra como ‘A Pilota Ritorna’ (1942), de Rossellini, é um filme de propaganda. Aliás, força aérea, marinha e exército tiveram as suas aventuras heroicas“, ironiza. “Mas o importante é o aprendizado que estes e outros filmes trouxeram aos jovens“.

Scipione Africano (1936), por exemplo, “é um filme terrivelmente racista, que defendia que os etíopes deviam ser submetidos porque faziam parte de uma civilização inferior. Mas importa referir a enorme importância dada ao estilo por estes projetos, para além de todo o desenvolvimento técnico que implicava criar um grande espetáculo. Os mais diversos ramos profissionais de uma produção puderam aperfeiçoar-se“.

Assim, “… já não são apenas as comédias do ‘telefone branco’ feitas em linha de produção – em vez disto têm de se criar novos enquadramentos, fazer-se novas experiências, ter mais atenção aos pormenores da espetacularidade“.

Essa capacidade permite um dos fenómenos artísticos e económicos cruciais dos anos 50 – o “Hollywood sobre o Tibre“. “Há essa deslocação da Hollywood para Roma – até porque o ‘templo romano’ é mais barato“, brinca. Essa será a base do luxuriante cinema de género italiano que eclode no final desta década. “Vários nomes importantes, como Sergio Leone, começam aí“.

 

O realismo: do “branco-e-negro” para o cor-de-rosa


Roma Cidade Aberta (1943): a clássica cena da morta de Pina

Sacchelli sintetiza: “O neorrealismo é um fenómeno muito breve e surge no contexto de esperança do fim da guerra. Um jornalista francês escreveu que ele começou com um filme (Roma, Cidade Aberta) e terminou com um discurso” (* Referência ao pronunciamento do primeiro-ministro, Alcide De Gasperi, em 1952, um violento ataque a Umberto D, de Vittorio de Sica, que desestimulou esse tipo de produção a partir daí).

Ao mesmo tempo foi um cinema que teve grande apelo temático após o fim da guerra – mesmo em países como os Estados Unidos que, apesar não terem sido teatro dos eventos, tinha os seus próprios mortos e mutilados para contar.

Apesar de ter alimentado uma estética nova com a influência mundial que sabe, no começo dos anos 50 o público já passava a ter outras demandas. “Com filmes como ‘Due Soldi di Esperanza’, em 1951, o cinema italiano toma outro rumo. Neste caso aproveitam-se certos ambientes neorrealistas, as filmagens externas, as paisagens e os dialetos e adapta-se às velhas fórmulas do ‘telefone branco’“.


Due Soldi di Speranza (1951): rumo ao “pink” neorrealismo

A fórmula, sarcasticamente designada em italiano como “escrita ‘tabolino'”, consistia, segundo Sacchelli, nisto: “Bom, temos um homem, uma mulher e 100 minutos de filmes para preencher. Como fazemos?” (risos). Aí apareciam as traições e os ciúmes que iam dar a obras populares como “Pane, Amore e Fantasia” ou, espécie de sequela, “Pane, Amore e Gelosia”. “Se fosse a história de uma rapariga que só fazia sexo depois do casamento era uma comédia; se fizesse antes virava um drama de Matarazzo!” (risos).

No final da década, mestres como Dino Risi dariam ao “pink neorrealismo“, designação que se atribui à tendência, uma acutilância especial ao usar dos seus artifícios para dissecar a sociedade pequeno-burguesa em ascensão. Antes dele, no entanto, o grande ideólogo do neorrealismo, Cesare Zavattini, testava outras formas, como na obra coletiva ‘L’Amore in Cittá‘, por exemplo (realizações de Antonioni, Fellini, Risi, Alberto Lattuada, Carlo Lizzani e o próprio Zavatini). “No filme narravam-se histórias de amor no pós-guerra, onde dava-se grande importância aos espaços, aos locais onde tudo acontecia e o ambiente realista circundante“.


L’Amore in Cittá (1953): experiências neorrealistas

 

Os anos 80 e a travessia no deserto: crise da indústria, crise de ideias

Poucos países podem rivalizar com o que se produziu em Itália a partir da segunda metade dos anos 50 e nos 20 anos subsequentes. “Esse é o período dos grandes mestres, onde o cinema experimental era popular (La Dolce Vita) teve a maior bilheteira de Itália de 1960″, produzia-se uma variedade impressionante no cinema de género e a produção italiana corria o mundo. Tal como aconteceu um pouco por todo o lado, em termos económicos aprofunda-se a partir de Star Wars a retomada do mercado pelos americanos, com a infantilização temática do cinema e um retrocesso dramático da diversidade e da experiência que dura até hoje.

Segundo Sacchelli, no entanto, não foi só uma crise mercadológica, mas de ideias. “Um dos problemas foi que a geração dos mestres não deixou descendentes. A partir de certa altura os talentos jovens constam-se nos dedos das mãos. Assim houve uma fratura ao longo dos anos 80 e 90 e uma nova geração teve muita dificuldade em impor-se“.

 

Ponto de chegada: a vida mexe-se sob o microscópio


A Grande Beleza (2013): o novo cinema italiano

O festival de Villerupt decorre em outubro/novembro nesta pequena localidade francesa. Mas o evento é grande – o maior de cinema italiano em território francófono. A proximidade com a antiga região do aço (Noroeste da Alemanha) justifica um enorme contingente de descentes de nativos da península mediterrânica. Por lá passa boa parte da produção do país no ano anterior.

Há jovens a fazer belíssimos filmes“, diz Sacchelli. “Infelizmente, o cinema italiano já não é distribuído como antes e, mesmo dentro de Itália, os únicos filmes que conseguem números relevantes no ‘box office’ são as comédias. Para encontrarmos um drama temos que ir ao 40º posto da tabela – e estamos a falar de um filme oscarizado – como, por exemplo, ‘A Grande Beleza’“.

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