Sexta-feira, 19 Abril

«Açúcar», um dos filmes mais ousados do FESTin: entrevista com Renata Pinheiro

O trabalho de Renata Pinheiro não é de todo desconhecido do público de cinema alternativo lisboeta: em 2014 Amor, Plástico e Barulho, sua longa-metragem de estreia em parceria com Sérgio Oliveira (aqui apenas como coargumentista), fez parte do IndieLisboa. Oliveira e a protagonista do filme passado no universo da música pimba, Maeve Jinkings, estão de volta ao lado da realizadora para o segundo projeto – que agora faz parte da programação do FESTin, que decorre no cinema São Jorge entre 27 de fevereiro e 6 de março, depois da seleção para o Festival de Roterdão em janeiro último.

Jinkings é a proprietária de um antigo senhorio colonial no Nordeste brasileiro. Ao retornar à velha casa da família, ela encontra e termina por representar um período de decadência, marcado pela ruína financeira e a ameaça sempre presente de próspero grupo afro-brasileiro cujo centro cultural recebe apoio de uma ONG internacional. No meio desta história os seus fantasmas muito pessoais, fantasias sexuais e um fundo onírico misturam-se para retratar de forma alegórica o mundo da opressão escrava.

Renata Pinheiro explicou ao C7nema algumas das ideias por trás de um dos filmes mais ousados e intrigantes da atual edição do FESTin.

Como surgiu essa história sobre a colonização/racismo e a forma “alegórica” de contá-la?

A forma alegórica surgiu na origem da ideia. Eu sonhei com a imagem de um barco navegando numa plantação de cana-de-açúcar. Essa imagem definiu toda a estética que iríamos utilizar para contar a história. Depois naturalmente outros signos foram se somando a obra como o Lustre de cristal que significa o poder material daquelas terras.

Há uma cena em que Branca e Zé Neguinho caminham dançando maracatu com o lustre. O maracatu é um folclore que surgiu em Pernambuco e especificamente naquela região. É por si só uma alegoria que representa a corte real. No maracatu há a rainha e o rei, a corte e seus escravos. Cada um também representa orixás do candomblé. As lendas e folclore da região também nos influenciaram a escolha estética do filme.

Entre os elementos singulares que utiliza para contar essa história de decadência senhorial está o uso de alguns artifícios de filmes de terror…

A Zona da Mata, é uma região marcada pelo passado escravocrata e por lutas constantes das comunidades Sem-terra que procuram adquirir terras improdutivas como forma de uma reparação histórica de um passado de exploração. Existe uma tensão na atmosfera daquela região. A nossa escolha por utilizar elementos do gênero de terror se deve muito a necessidade de passar esse sentimento de tensão que sentimos por lá.

Também é uma região muito mística. Muitos dos mitos e lendas da região também escondem nas entrelinhas um caracter educativo que ensina através da “moral da história” como sobreviver a mata e sobretudo ao poder dos senhores de engenho.

Renata Pinheiro

Outro elemento importante é o da associação desta decadência socioeconómica da protagonista com uma experiência quase onírica de uma sexualidade reprimida. Concorda?

Bethania é reprimida em todos os sentidos, como herdeira de uma grande terra histórica ele deve se comportar conforme dita a tradição, ela nunca questionou mas tão pouco parece uma pessoa resolvida e feliz. O desejo sexual reprimido se apresenta numa tensão sexual entre ela e Zé Neguinho um empresário da região, ex-trabalhador de suas terras. A personagem Bethania é apresentada num momento de transformação, a história é um rito de passagem na vida desta mulher. A sexualidade e a espiritualidade são os motores desta transformação.

Ainda exigiram-se algumas ousadias da Maeve Jinkings. Como foi o trabalho com ela?

Maeve é extremamente apaixonada pelo que faz. Uma vez no projeto, ela vai as ultimas consequências dando vida e sentido a personagem. A cena de masturbação com a terra é a ideia da terra exercendo o poder da ancestralidade levada as ultimas consequências.

Como tem sido a passagem pelo circuito de festivais – primeiro o do Rio, onde o filme foi aplaudido, e o de Roterdão?

Tem sido muito bom. O Açúcar foi rodado em 16 dias com recursos próprios. Havia uma necessidade artística urgente. Estamos recebendo mais do que imaginávamos. O filme tem sido muito elogiado, é muito gratificante conversar com a plateia e com críticos que inclusive nos chegam com novas leituras que só fazem engrandecer o filme. Em Roterdão fomos muito prestigiados em todos os debates depois da sessão, haviam muitas pessoas interessadas em conversar.

Foi muito bom perceber que fora do Brasil há uma compreensão total do filme. Saímos de Roterdão com vários convites para exibições em festivais espalhados pelo mundo. A nossa felicidade veio também com um convite muito especial de uma artista plástica negra americana que assistiu o filme em Roterdão. A premiada artista Ellen Gallagher vai exibir o Açúcar em sua exposição em Los Angeles que fará parte da semana do orgulho negro nos Estados Unidos já agora em fevereiro.

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