Terça-feira, 19 Março

André Gil Mata: «o academismo é algo que não me assiste»

Sarajevo é uma cidade abalada por espectros de uma Guerra não tão distante e o português André Gil Mata aventura-se a codificar esses mesmos espíritos em Drvo (A Arvore). Porém, o exorcismo é falhado, e o desvendar converte-se automaticamente num retrato de impressões e alegorias atmosféricas. Essa Bósnia sob cicatrizes poderá responder como um alarme aos tempos “negros” que ameaçam decorrer nesta Europa.

Um projeto que nasceu de uma imagem, esta materializada por um realizador num país que não lhe pertence e que promete abordar sob uma língua universal – o Cinema. André Gil Mata falou ao C7nema sobre as suas paixões, medos e das experiências adquiridas em Sarajevo, quer na cidade ou na escola FilmFactory, na qual doutorou-se, sob a orientação do cineasta húngaro Béla Tarr.

Segundo as notas de produção, a ideia para este filme surgiu através da imagem de uma arvore.

Há 5 anos atrás cheguei a Sarajevo e encontrei uma cidade coberta de neve, a qual não conhecia superficialmente, e essa relação com a História e de não conhecer os lugares, fizeram-me sentir pequeno e incapaz de filmar aí, apesar de Bela [Tarr] nos propor a filmar automaticamente.

Realmente, foi durante a ida a uma zona da cidade, não tão central, que deparei com uma determinada imagem. Um rio, um homem e fumo. No centro disto, uma árvore despida enraizada na neve. Registei esta mesma imagem na minha câmara. E tendo em conta o facto de Sarajevo ser uma cidade profundamente vivida pela Guerra, aliás, esta encontra-se presente na arquitetura (os buracos das balas, por exemplo, que sempre relembraam a passagem do conflito) e das pessoas, na sua postura no qual caminham com o pesar de uma assombração. Essa porque juntou com este espirito vivido na Cidade, por estes fantasmas que auferiam simbolismo aquele simples retrato.

Nisto criou-se uma obsessão pela repetição das nossas ações, independentemente dos anos, das pessoas, da História e do estado do Mundo. Aquela Guerra poderia, ou poderá voltar a ser repetida.

Sim, repetida. Aliás, o seu filme embarca nesta demanda por fantasmas.

Sim, no meu conhecimento foi uma Guerra que terminou no conflito físico, digamos, mas é uma Guerra que não está resolvida, porque nos meus olhos, as questões nacionalistas permanecem ainda dentro das pessoas, como em certas zonas. Comporta-se como um eco, uma latência de nacionalismos  r questões que foram incendiadas por determinados sectores políticos. À imagem disto, é o que está acontecer um pouco por toda a Europa. Existem e continuam a existir incendiários, de forma a assumir controlo, tal como noutros tempos. Na verdade, estamos a recuar socialmente e politicamente e a ideia do filme começou por surgir dentro desse ciclo de repetições dos erros humanos. Continuamos a errar como fizemos anteriormente. Não aprendemos nada com isso.

Mesmo sendo assombrado por estes mesmos espectros, existe um receio em abordar criticamente este cenário, visto que é uma apropriação cultural e histórica. Nesse sentido, você fez um retrato do conflito, evitando qualquer tendência de crítica ou de denuncia.

A apropriação da Guerra, quer dos Balcãs, como da Segunda Guerra Mundial, é algo que não o posso fazer porque simplesmente não o vivi, logo não sinto capacidade nem dever de tomar um partido. Se eu entrasse na cedência de um partido, estaria a entrar nessa lógica de pensamento que originou estes conflitos. O que tento fazer é uma reflexão desses nossos erros. Não estou a por em parte quem fez os erros, ou olhar de cima e apontar que “aquele determinado errou”, e descrever os erros. É mais uma tentativa para pensar naquilo que está a acontecer, quer ali, assim, como em outros pontos, na Europa e no resto do Mundo. Creio que por vezes vivemos as nossas vidas sem refletir sobre isso, o que nos coloca numa posição igual a estes pequenos conflitos como podem incendiar, ou que incendiaram na Segunda Guerra, ou nos Balcãs. Não sei donde vem essa raiz da apropriação de território, invasão, extermínio por parte do Homem. Mas uma coisa é certa, é algo que me transtorna.

Até porque o cenário da Árvore consegue ser universal. O inimigo, apesar de presente, é invisível, e nessa invisibilidade é lhe atribuído o medo. Recordo a personagem da criança que corre desalmadamente na floresta e que identifica o perigo como “Fascistas”. Até que ponto este filme não serve como uma alarme às expansões do pensamento da extrema-direita na Europa que vemos atualmente?

Admito que também é um medo que eu próprio tenho. Sinceramente, vivemos numa democracia em Portugal e o facto de estarmos encostados no oeste, desvia-nos um pouco a nossa atenção a este fenómeno. Também pelo facto de nunca termos passado por nada aqui nos últimos anos. Felizmente! E nesse ponto sentimo-nos agraciados pela sorte de não vivermos um conflito recente, apesar do Ultramar ainda encontrar-se na memória. Fora isso, vivemos na ideia de habitarmos numa espécie utopia. Harmoniosa utopia.

Mas para além da fronteira portuguesa, testemunhamos manifestações em França, onde a Extrema-Direita assume papéis políticos, ou a Catalunha com os políticos a usar as mesmas armas que foram usadas em outras guerras. O de colocar as populações numa frente quase incendiaria de nacionalismo cego. São cenários que nos podem amedrontar, mas acima de tudo devemos refletir e não deixar influenciar por estes discursos de loucura. Temos que pensar sobretudo naquilo que a História nos ensinou, o que isso provocou, o terror de outros tempos. Temos que viver com essa consciência .

O seu filme é praticamente composto por planos-sequência e aí devo perguntar: para ti quanto dura um plano até este perder o seu simbolismo?

O plano dura, não por simbolismo, o tempo em que o próprio plano se assume daquilo que nós imaginamos. Há um determinado momento em que é o próprio objeto filmado que adquire força acima de qualquer ideia, rebeldia contra o que imaginamos anteriormente e aquilo que pretendíamos filmar. Aí, o plano ganha uma identidade própria e autodefine essas definições. Quando estamos a filmar sentimos o quanto o plano vive, ou seja, não devemos programar que o plano y deve ter x de duração, o que importa é dar a vida a esse mesmo plano. E dar-lhe os elementos de forma a que se autoconstrua.

Depois há a questão da montagem e o sentir essa duração. O tempo que não seja de forma racional (começa aqui e tem que acabar ali), e sobretudo procurar quando um plano está vivo e até onde ele mantém essa vivacidade. É quase como jogar um puzzle, basta juntar as peças. A música, por outro lado, poderá servir como um auxilio dessa duração e atribuir os mais diversos suplementos, por exemplo, a tensão ou a emoção. Depende muito da intenção. Acho que um plano, antes de filmar não sabemos o quanto durará.

Mas num pensamento academista há a regra de que um plano tem que obedecer a um x tempo.

A única academia que efetivamente eu tenho é a Matemática, e o que ela realmente nos diz são determinadas regras. Porém, nunca uma limitação. Há uma noção de infinito. O facto de termos regras, o conhecimento delas, permite andar dentro do jogo, mas nunca a imperatividade de usá-las. O academismo não é algo que me assiste.

Quanto ao plano, estarmos a controlá-lo é limitar o seu potencial enquanto elemento.

Quanto às influências de Bela Tarr?

Acho que ele me influenciou mais como pessoa do que propriamente como cineasta. Não sinto. Antes de o conhecer pessoalmente, era mais influenciado pela obra dele do que sou hoje. Conheces a pessoa, passas o dia a dia com ela e isso ajuda-te a desmistificar essas questões de idiolatria ou de veneração. Ele tem um caracter bastante forte, o que nos poderá afetar de certa forma. Creio que … sei lá, qualquer indicação de procurar ou repetir a linguagem que é dele, é realmente algo que até a ele provoca confusão.

Gus Van Sant, por exemplo, diz que o cinema dele o mudou. Descobriu outro cinema após ver o Tango de Satanás. Para mim, o filme que me fez olhar para outro cinema foi Ao Sol do Marmeleiro de Victor Erice, ou os 400 Golpes de Truffaut. São coisas que nos mudam, mas não nos modificam, e sim … transformam-nos. Não no sentido de sermos miméticos ao trabalho em causa

Não sei a que ponto fui influenciado para A Árvore. Obviamente temos a influência das pessoas que nos rodeiam.

Voltando atrás no tempo, o André tirou a licenciatura de Matemática antes de se aventurar no Cinema.

Na verdade, concorri à Escola de Cinema e não me aceitaram, e a única coisa que me fascinava para além do Cinema era mesmo a Matemática [risos].

Tentei estudar Cinema sozinho, no Porto, o que tornava a tarefa menos acessível, visto que a cidade não apresenta as mesmas regalias culturais de Lisboa. Por exemplo, não existe lá nenhuma Cinemateca. O facto de ter nascido numa cidade pequena também não me ajudou, sendo que os videoclubes tornaram-se de alguma maneira a minha escola. A única forma de aprender Cinema era através do aluguer naqueles dois videoclubes existentes na cidade. Os donos desses estabelecimentos foram realmente os meus programadores de Cinema.

Esses “tempos difíceis” cheio de decisões difíceis – Que filme irei levar esta noite? [risos]

Pode parecer meio anedótico, mas é a verdade. O que também me ajudou, foi na altura da minha adolescência ter aberto um Cineclube na cidade vizinha [Santa Maria da Feira], que apresentava uma programação, na altura, fora deste país. Ciclos e retrospetivas inacreditáveis, que muitas delas apenas se fizeram ali. E foi aí que deparei-me com o outro Cinema.

E é triste que atualmente os Cineclubes não apresentem essa ousadia. Obviamente, grande partes deles sem apoios e muitos dos que há, apenas subsistem com as “sobras” das salas das Grandes Cidades. Perderam a sua identidade.

Exerceu os cargos de curadoria no Festival de Cinema de Santa Maria da Feira, entre 2001 a 2008, e um ano depois concretiza a sua primeira curta-metragem [Arca d’Água]. A questão é, enquanto curador do festival procurava nos filmes o mesmo que tenta alcançar com as suas produções?

Sai da curadoria para fazer a minha primeira curta e gostava que essa estreasse naquele festival, porque esse mesmo dizia-me muito em termos afetivos. Então sai por questões éticas, não havia senso em julgar o meu trabalho. Saí para que pudesse julgá-lo e o selecionassem ou não para o festival. Foi mais nesse sentido.

A minha curadoria no festival foi outra escola de Cinema, a oportunidade de poder discutir filmes com todos aqueles que fizeram parte do comité seletivo e posteriormente com os próprios realizadores. Resultou numa experiência enriquecedora.

Agora, as duas experiências são completamente diferentes, tenho objetivos completamente distintos em ambas.

E em relação à ida a Berlim, como se sente pelo seu filme ter sido selecionado?

Primeiro de tudo, sinto-me angustiado por ter terminado o filme. Para mim os filmes são como paixões e quando os termino sinto que estou a terminar uma relação, ou simplesmente essa paixão vai embora das nossas vidas sem dizer adeus devidamente e ficamos desolados por não poder amar mais. Neste caso, não poder trabalhar no filme.

Quanto ao festival, sinto-me nervoso quanto a essa exposição, onde pessoas vão ver essas paixões, obsessões e cada um interpretará à sua maneira. De certa forma, essa loucura que durou x anos, que me fez pensar que era a única coisa que amava, acordava e deitava a pensar nela, e no fim, já não nos pertence. Tentamos entender se estamos a apaixonar pelas “pessoas” certas ou simplesmente vamos sair iludidos.

Depois existe essa questão subjetiva. sabendo que nem todas as pessoas vão gostar do filme. O facto de pelo menos uma gostar do filme é bom, porque já não nos sentimos tão isolados nesse redopio amoroso.

E novos projetos?

Tenho ideias, mas ainda é emocionalmente cedo. Sinto que acabei de sair de uma relação e o meu corpo precisa de um certo tempo para avançar para outra paixão.

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