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Andres Veiel: “Façam o vosso filme sobre Beuys, este é o meu”

Não é certamente fácil fazer um filme sobre Joseph Beuys, figura marcante do século XX que  expandiu o conceito clássico da arte, levando-a para domínios onde “todos eram artistas” e se busca a liberdade – não a oferecida pela democracia, que segundo o homem do famoso chapéu era apenas uma desculpa para na verdade termos “um regime burocrático partidarizado“.

Figura tão polémica como apaixonante, Beuys é o centro do novo filme de Andres Veiel [na imagem acima], realizador alemão que trabalhou durante três anos neste documentário que chega esta semana aos cinemas portugueses.

O c7nema teve a oportunidade de falar com o cineasta, que nos contou quais os principais desafios deste trabalho, no qual o próprio Beuys conta a sua história através das suas próprias imagens, muitas delas inéditas.


Joseph Beuys

Porque decidiu fazer um filme sobre o Beuys e quais os principais desafios com que teve de lidar?

Bem, primeiramente tive de ligar com uma grande quantidade de material sobre ele. Cerca de 20 mil fotografias e 300, 400 horas de imagens em movimento dele. E áudios. Não foi fácil encontrar uma estrutura para um filme que não podia ser clássico, não podia estar organizado de maneira convencional das cinebiografias. Por que fazer um filme sobre uma pessoa tão especifica como ele, não podia ser de forma extensiva. Do ponto de vista artístico, não podíamos começar a falar do [nascimento] do Beuys, mostrar ele ir para a escola, a fazer isto e isto [cronologicamente] e no final ele morre.

Era necessário encontrar uma linguagem formal específica para o filme, algo que se aproximasse da complexidade da personagem do próprio Beuys. Eu sempre o comparei a uma lebre. Uma lebre nunca segue o seu caminho sempre em frente. Improvisa! Por isso queria uma estrutura para o filme que não fosse de A para B e de B para C. No início não tínhamos ideia de como isto podia funcionar, tinhas de encontrar essa estrutura, encontrar o fio narrativo.

No final, estivemos 18 meses na sala de montagem com dois editores para completar o trabalho. Era um projeto muito particular.

Para além disso, outro desafio foi conseguir a permissão para usar todas as imagens do Beuys que precisávamos. Tivemos de pedir autorização a cerca de 200 pessoas; realizadores, jornalistas, fotógrafos, um pouco de todo o lado. E era preciso encontrá-los, falar com eles.


How to Explain Pictures to a Dead Hare, 1965

Uns colaboraram de forma muito simpática e apoiaram o nosso filme. Claro que muitos pediram dinheiro, de forma razoável, e outros pediram valores na casa dos cinco mil dólares a foto. Nós tinhamos 20 mil dólares e precisávamos de centenas de fotografias. Isso dava cerca de 50 dólares por imagem, e não podiam ser os tais 5 mil dólares. Tudo isso tornou as coisas mais complicadas, porque quando queremos usar uma imagem, e não conseguimos, não basta apenas substituir a foto. Temos de repensar todo o projeto e as suas cenas. As fotografias eram muito importantes para a história que queríamos mostrar, para o storytelling.

Por isso, foi um longo caminho cheio de obstáculos, mas também com grandes recompensas. Lidar com alguém como o Beuys foi um presente na forma de inspiração diária, com novas ideias, com muita arte. Não me arrependo nada de trabalhar neste projeto.

Entrevistou inúmeras pessoas. Li que foram mais de 20, mas no filme só surgem 5 a falar. Também falou com a mulher e os filhos do Beuys, mas eles não aparecem no projeto. Foi uma opção?

Sim, falei com eles, até porque precisava de permissão para usar as imagens de arquivo. Eles é que decidiam se eu podia usar a arte do Beuys no filme. Por isso, foram muito importantes. Ajudaram-nos, mas não estavam dispostos a aparecer no filme. Na verdade, eu não os filmei pois não queriam surgir em frente às câmaras. Foi – de certa maneira – devido à sua modéstia. Eles queriam que o Beuys – através das suas coisas – falasse por ele próprio, e não fosse a perspetiva dos filhos ou da viúva. Tive de aceitar esta decisão.

Quanto às outras entrevistas, a razão porque não usamos muitas das cenas que filmamos foi clara. No início, pensamos que temos de ter certos testemunhos de pessoas que estavam ao pé do Beuys em certas situações, mas depois tornou-se de certa maneira uma competição [entre os testemunhos]. Muitas dessas pessoas só nos contaram episódios soltos, estórias, às vezes com piada, às vezes absurdas. No final, senti que as imagens de arquivo que tinha do Beuys falavam melhor por ele mesmo, do que as estórias que estas pessoas tinham para contar.

As cinco pessoas que falam no filme eram próximas dele e tinham informações privilegiadas que as imagens de arquivo não conseguiam compensar. A ideia era até que nenhuma dessas pessoas aparecesse, mas não foi possível. Nós fizemos uma primeira versão sem esses testemunhos, mas constatamos que o projeto ficava mais pobre. Como tal, chegamos a este balanço de colocar apenas estas cinco pessoas a falarem de episódios concretos da vida do Beuys.


I Like America and America Likes Me, 1974

E teve algum problema no controle da história que queria contar? Ou seja, já que teve de pedir permissão para usar as imagens de arquivo à família, houve alguma situação em que não contou certos detalhes porque eles não iriam gostar de ver isso no filme?

Não, não houve qualquer tipo de censura. Para mim foi um desafio logo na génese do projeto, pois sabia que eles podiam querer controlar criativamente. Eu disse logo que iria fazer o filme que sentia que tinha de fazer. Não tem sentido fazer um filme e no final mostrar à família, ou quem quer que seja, e tenha de lidar com questões como “não gosto disto”, “tem de cortar isto”. Isto até ao ponto em que já não seria  o meu filme.

Por isso, para evitar esta situação,  disse logo que se vou fazer um filme [sobre o Beuys] tenho de fazer algo que seja mesmo meu. Se confiarem em mim, ótimo. Se não confiarem, não faço o filme. Eu tinha uma alínea no meu contrato que dizia que não podiam haver interferências na narrativa. Isso era muito importante para mim.

Este seu trabalho é um documentário. Pensou alguma vez em fazer uma obra de ficção sobre o Beuys?

Não. Se não tivesse permissão da família para fazer o documentário, eu nunca ponderaria fazer uma ficção. As imagens de arquivo são tão fortes que acho que nenhum ator do mundo seria capaz de ser como o próprio Beuys. Para mim, era absurdo olhar para as imagens de arquivo e pedir a um ator, por exemplo, para meter um chapéu e ser o Beuys.

Mas se não conseguisse a permissão, tinha a ideia de fazer um documentário com recurso apenas às pessoas que tiveram experiências cruciais com a arte do Beuys. Colocava-os em frente à câmara e perguntava-lhes que experiência marcante e transformadora tiveram com uma peça de arte dele. Teria de ser um outro tipo de filme, mais experimental, mais abstrato.

Mas neste caso – e sim, eu faço ficções, faço teatro e trabalho de vez em quando com atores -nunca tive o desejo de fazer um trabalho de ficção. 

E se fosse o Beuys a fazer um documentário sobre ele mesmo. Como acharia que seria?

(risos) Sem modéstia, acho que o Beuys iria gostar do meu documentário. O filme mostra um Beuys com imenso humor, de certa maneira obcecado com as suas ideias, mas salvo pelo humor. O humor salva-o de estar agarrado às suas ideologias, o que de certa maneira é um cliché à chamada “forma germânica” de ser: sem senso de humor; muita retidão e sofisticação.

Eu mostro outro Beuys. Fazer um filme sobre ele significava fugir de diversas coisas. Eu sei que muitos amigos dele criticam este filme porque acham que determinada coisa devia estar na obra; “este episódio”, “esta peça de arte”, etc… Mas este é o meu filme e isso significa que não é uma narrativa que contenha tudo. Talvez o próprio Beuys achasse que falta algo. Seria normal. Eu tive discussões com as pessoas que surgem no filme, onde me disseram que o meu filme não era o deles. Isso é natural, eu omitir certas coisas e ter o meu próprio foco.


Para angariar fundos, Beuys visitava o Japão e participava em  anúncios publicitários

É como aquele debate onde lhe perguntam porque não usou carrinhos de bebé num trabalho artístico e o Beuys implicitamente diz que isso seria a opção da pessoa que fez a questão. Eu diria o mesmo. Façam o vosso filme sobre o Beuys, este é o meu. E não me importo nada que existam muitos outros filmes sobre ele para além do meu. Quem gostar do meu filme, gosta. Quem não gostar, não gosta. É a vida.

Portanto, está contente com o resultado final e não se arrepende de nenhuma decisão artística tomada?

Neste momento, não! Talvez mais tarde. Às vezes vejo filmes meus de há dez anos atrás e penso que faria agora uma cena de forma totalmente diferente. E que foi um erro enorme executá-la assim dessa maneira. Mas isso demora alguns anos. Tenho de criar um certo distanciamento com o trabalho para ver certas falhas e pensar como faria as coisas de maneira diferente.

Neste momento posso dizer que este trabalho era o que queria fazer e isso para mim é uma benção. Vamos ver como a “lebre” corre nestes próximos dez anos. Como eu sou também uma “lebre”, talvez veja no futuro as coisas de forma diferente.

E tem algum projeto novo em que já está a trabalhar?

Sim. Eu já estou a trabalhar num projeto que tem como base o futuro nos próximos dez anos, o rendimento mínimo garantido, o desenvolvimento de empresas como a Google, Facebook, Apple e Amazon, e como esta indústria de dados vai desenvolver a inteligência artificial. Primeiro vou fazer uma peça e depois um filme. Estou atualmente na fase da pesquisa.

De certa maneira, é um desenvolvimento da arte do projeto Beuys, porque ele foi sempre coerente nas questões que levantou, sempre esteve à frente do seu tempo. Questionou a democracia, os fluxos monetários. Eu vou pegar em algumas dessas questões para o meu projeto.

De momento tenho conversado com muitos cientistas de todo o mundo; pensamos na nova Europa, olhamos para as políticas de austeridade que se seguiram à crise financeira, por isso… Há muitas novas questões, só temos de encontrar o foco nas muitas frentes de estudo e debate que temos.

Se tudo correr bem, no final do próximo outono já terei uma peça sobre o tema. Depois disso, pensaremos em fazer um filme sobre o tema.