Sexta-feira, 19 Abril

Susana Nobre: «Um realizador não se faz de um filme»

Susana Nobre foi um dos nomes portugueses a figurar a 47ª edição do Festival de Cinema de Roterdão. Embora tenha apresentando a sua primeira longa-metragem ficcional, o projeto não fica longe longe do seu próprio conceito de Cinema. Tempo Comum é essa estreia, um retrato sobre as implicações da maternidade nos dias de hoje, mostrando o quão relevante é o papel da mãe e, porque não, o papel do pai. Mas acima de tudo, este é um “filme ouvinte” que capta a sua emoção na questão do discurso, desde a emissão até à sua receção.

O C7nema conversou com a realizadora sobre o seu novo projeto e, no fundo, sobre a sua visão cinematográfica e o seu conceito de ficção.  

Como surgiu a ideia para este filme?

Este projeto nasceu com base na minha própria experiência como mãe, a acrescentar ao facto da minha filha ter nascido no Inverno, e, consequentemente, a licença de paternidade, sobre a qual reflito neste filme. Lembro-me que na altura encontrava-me a trabalhar no IEP, no programa Novas Oportunidades, e toda esta licença foi encarada por mim como uma espécie de reclusão. Foi durante esse período que absorvi uma espécie de experiência partilhada, quer pelas pessoas que me visitavam que contavam as suas histórias (a memória dos filhos ou até mesmo da infância, dos problemas conjugais), quer pelo silêncio, uma sensação quase de confessionário. E isso enquanto executava as tarefas maternais.

Havia de facto essa dimensão intimista e lembro-me de na altura pensar neste dispositivo tão minimal, ou como a sugestão minimal do Ten, do Kiarostami, que foi uma referência na origem neste projeto. Nesse sentido, tentei a possibilidade de incutir no filme uma espécie de díptico, uma pessoa que ouve, outra pessoa que fala, uma que interpela e outra que responde, num espaço completamente circunscrito. Uma ideia muito minimal: uma pessoa que amamenta, outra que fala.

 

E porquê só agora aventurar-se na sua primeira ficção?

Não diria que esta seja a minha primeira aventura na ficção, até porque as curtas possuem o gesto da ficção neles e nesses filmes existe o ponto-de-vista da estrutura, do que se realmente pretende e a forma como as imagens são associadas. Sem querer, o meu percurso partiu do documentário, do ponto-de-vista tradicional, daquilo que podemos apelidar de documentário observacional, ou seja, ir para um sítio, imergi-lo e conhecê-lo bem.

Foi assim que comecei, esse meu primeiro gesto com a câmara, pouca intervenção e posteriormente o trabalho da montagem. E o que tem acontecido é que os documentários são sucedidos depois de uma curta, sendo que esta tem a ver com a experiência do documentário anterior, uma espécie de sintaxe do arquivo que ficou dessas imagens e experiências do documentário. Muito mais elíptico, mais cinematográfico daquilo que é essa associação que é possível pelo Cinema, sem discursos, sem tese, e que tem mesmo a ver com essa especificidade da linguagem do Cinema. As minhas curtas viveram um pouco dessa caixa negra dos documentários e dessa forma tem sido isso.

Aquilo que é para mim inaugural neste projeto, em relação aquilo que é a ficção, está ao nível dos diálogos, como a palavra é trabalhada. Até este filme, nunca tinha escrito diálogos, moldar os textos para a duração de um plano. Isso foi a primeira vez que fiz.

Digamos que foi um grande desafio para si.

Foi sim, um passo bastante importante. Foi também o que me absorveu mais a nível de realização – esse trabalho com os textos.  

Falando nessa dicotomia – o falar e o ouvir – é uma característica da sua carreira enquanto realizadora, esse interesse pelos relatos dos outros e como um filme cerca a mesma?

Acredito que um filme é também ouvir uma história e não necessariamente assistir ao encadeamento das ações. Ver também é ouvir. Acredito nessa projeção imagética de uma história que é contada. Acima de tudo, o objetivo deste filme era criar um ponto essencial que é um ponto de escuta. Esse, que é a do protagonista, mas também a do espectador.

 

Segundo o contexto académico, uma ficção deve apresentar um conflito. Em Tempo Comum esse mesmo encontra-se discreto e talvez apenas revelado nos últimos minutos do filme. Em relação a esses minutos, deparamos com um statement sobre a emancipação das mulheres durante a sua maternidade.

Não era intencionalmente [o conflito]. O ponto de partida para mim era como fazer um filme serial no sentido das visitas e das histórias que são relatadas, e como é que isso caracteriza esses momentos da vida. Uma mãe que vai ter um primeiro filho, recebe os amigos que lhe contam as suas vivências, e como é que essas histórias de certa maneira ligam ao que ela está a viver. Era somente isto.

Acho que sim. No fim há um filme, não feminista, mas sobre as mulheres de hoje, e como é que elas são mães numa cidade. Esse recorte da música do tempo de como as coisas se passam.

De volta a esse conflito/declaração, é certo que existe uma ideia de descartabilidade da figura paternal na criação e educação da criança. Enquanto a protagonista solicita ajuda por parte deste, a sociedade tende em encarar o papel de mãe como uma obrigação, acima do papel de pai. Nos últimos minutos, o seu filme tende em encontrar uma espécie de utopia em ambos os papéis, talvez uma crítica social. Procurava exatamente isto no seu filme? 

Sim, temos essa ideia de que o pai pode, e deve, usufruir dos prazeres do seu tempo. Mas atenção, em Tempos Comuns é ele que tem mais tempo para a criança, querendo sempre estar presente nos “primeiros passos”, não em primeiro lugar, mas presente. É interessante, porque existe algo que acontece interiormente nele que tem a haver com esta transformação do amor. Por exemplo, o diálogo final demonstra perfeitamente isso. Poderá ser ausente da vida prática, mas nunca da vida afetiva. Depois há neste filme, portanto, visto que é o mais encenado que já concretizei, um argumento escrito que tive que adaptar à vida dos protagonistas (obviamente havia aqui um constrangimento, o qual queria manter).

Estes dois amigos aceitaram receber-me e fazer o filme comigo. Há um gesto enorme de amizade naquilo que foi a possibilidade concretizar este filme, o que não era possível com outras pessoas, como também num ator profissional.

O que quero dizer é que há um fundo que é de facto a vida deles que continua a ser vivida, e filmo ela ser vivida e existe uma sinceridade nisso. Sentimos que eles estão cansados, e realmente estão. Há uma certa impaciência que faz parte do corpo dos atores que eles são.

Questiono ainda se tal “conflito” foi encenado na vida deste casal?

Não consigo pensar numa estrutura narrativa que tem que cumprir esse esquema em que supostamente a ficção pode-se desenrolar. Neste caso em particular, acho que no meu filme a crise não existe, até mesmo do ponto de vista exterior à sociedade. Não há tensão, aliás, não procuro esse conflito por si só, ou de uma construção de suspense, etc. Os meus filmes vivem muito da constelação de afinidades entre, por vezes, uma pequena sinopse e o trabalho desenvolvido a partir daí. Não me interessa trabalhar o controlo do efeito do filme, não tenho noção nenhuma sobre isso, do que é que são os efeitos emocionais do que isso possa induzir.

Em Tempo Comum, recordei uma fascinação sua pela mostra de fotografias, emanando um passado não tão longínquo talvez, mas uma certa narrativa silenciosa que nasce a partir dessas memórias impressas. Recordei isto, porque muito deste dispositivo foi utilizado no seu Vida Activa.

Isso tem de ser relacionado com os tais materiais que apoio, as tais fotografias, pinturas, as cartas impressas e mesmos escritas, e pensando no caso da Vida Activa, temos lá os documentos. Não tem a ver com a questão de solicitar a memória. Por exemplo, o meu primeiro filme, Lisboa, Província, é a leitura de um processo clinico. Para mim, um arquivo médico tem a projeção de uma história de vida, só um documento com a naturalidade da pessoa ou a data já projeta tais vivências. São esses materiais que nos levam a outros ditos que não estão lá presentes. São materiais muito ricos para serem trabalhados e que gosto de usar.

Visto que Tempo Comum vai figurar a programação do Festival de Roterdão, para si, qual a importância dos festivais de cinema atualmente?

O poder de mostrar o filme num sector de pessoas que à partida estão muito disponíveis para ver os filmes sem a necessidade de saber demais. São espectadores abertos, sim, a esses filmes com diversas experiências e possibilidades cinematográficas. É importante também para este poder consolidar o seu trabalho. Um realizador não se faz de um filme, mas sim de uma sequência de trabalhos que em certa forma, no seu conjunto, se vai percebendo que existe qualquer elemento a procurar. Por outro lado, como realizador assegura-nos uma certa autoconfiança, um certo reconhecimento, um certo currículo também.

Mas não devemos ter apenas a vontade de filmar com o intuito de integrar esse circuito dos festivais. Se os filmes não entrarem num festival, gostaria que tal não ferisse a minha vontade filmar. E não se deve filmar para os festivais.

Pretende continuar na ficção?

O meu próximo filme terá tanto de ficção como documental. Será um filme de viagens, de encontros.

Quer falar mais sobre esse projeto?

Este novo filme regressará à minha experiência nas Novas Oportunidades em Vida Activa. Terá como título O Táxi do Jack, que será protagonizado pelo meu amigo Joaquim, que entrou neste Tempo Comum, assim como no meu Prova, Exorcismos. E será uma viagem na linha de Lisboa a Vila Franca de Xira a bordo no seu táxi. A par disto, vamos também trabalhar a história de vida dele, conotando a sua vivência como taxista nos EUA. Será um filme que tecerá um reencontro desse passado com a sua atualidade. 

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