Sexta-feira, 19 Abril

Sou Abadi: «o maior contingente europeu do Daesh vem de França. Temos de compreender o porquê.»

Estreou hoje nos cinemas nacionais a comédia Cherchez La Femme (Há quem prefira as de véu), o primeiro trabalho de ficção de Sou Abadi, cineasta francesa de origem iraniana.

No filme seguimos um jovem casal que se vê confrontado com a radicalização do irmão da rapariga e que proíbe qualquer contacto dela com o namorado. A solução? A solução para o rapaz é vestir um Xador, passar por uma mulher que guia a jovem pelos caminhos do Islão mais radical e sobreviver a tudo sem que o irmão da jovem também se apaixone por ele.

Abadi falou ao C7nema sobre a forte componente política que a sua comédia detém, das dificuldades que enfrentou na concretização da obra, das influências e da sua esperança, nem que seja no mercado negro, de os iranianos poderem ver o filme.

Aqui ficam as suas palavras:


O que a levou a fazer um filme com esta temática e como se processou a génese do conceito?

Não existiu apenas uma razão para eu avançar para este filme, mas sim várias. Uma delas foi o facto de eu ter vindo do cinema documental – fiz há alguns anos o SOS Teerão – e de ter proposto [aos produtores] fazer uma série de outros documentários que foram sempre recusados. Mesmo que tenham ganho alguns prémios [em fóruns de coprodução] ou bolsas para o desenvolvimento. Foram todos recusados. As televisões não os queriam. Por isso senti que cheguei a um ponto da minha carreira onde não avançava. O último projeto dessa linha em que me envolvi, durante cinco anos, foi um fracasso total. Entrei em depressão com isso. Para sair dessa depressão decidi abandonar o mundo do documentário e lancei-me nesta ideia que já tinha na cabeça há algum tempo.

Nunca tinha escrito uma ficção e disse para mim mesma, “quero um fazer um trabalho ao estilo Billy Wilder“. Foi então que coloquei a questão: “Como é que nos dias de hoje Billy Wilder trataria um tema atual“. Como nasci no Irão, como vivi nos primeiros anos da revolução islâmica, esta temática [do filme] surgiu-me de forma natural.

Um dos momentos importantes foi quando um dia, em que estava com um amigo editor com quem já tinha trabalhado, vemos duas mulheres integralmente tapadas que passam por nós e entram num banco. Nós dissemos: “elas vão assaltar o banco“. A partir daí começamos a brincar e a delirar criativamente com a história. Foi isso que me fez lançar imediatamente para a escrita da obra.

O Cinema Francês faz muitas comédias políticas e sociais. O Jean-Pierre Jeunet diz que hoje em dia só se financiam esse tipo de comédias. Sentiu isso também?

O tipo de filmes como o que fiz, com o seu tom político, são difíceis de fazer em França atualmente. E se retirarmos a política deste filme, temos uma comédia sobre nada. Uma merda. (risos) São essas questões políticas que dão ao filme um certo calibre. Não é nada fácil tomar a decisão de fazer uma comédia com uma afirmação política.

Por outro lado, é verdade que hoje em dia em França, quando alguém quer fazer um filme, se for uma comédia tem mais chances de encontrar produtores. Mas não foi por isso que fiz uma comédia.

Este filme sou eu. É a minha natureza. Não queria apresentar este tema sob o ângulo da tragédia. (…) Quando vou aos cinemas franceses não encontro muitas comédias engraçadas. A última que me fez rir foi a da Carine Tardieu, Ôtez-moi d’un doute (Só Para Ter a Certeza). É uma comédia inteligente e emocionante. Mas em geral, as comédias em França não me fazem rir. O Michel Leclerc, sim. Faz-me rir.

Numa entrevista ao Le Figaro disse que teve medo que ninguém quisesse atuar no filme. Foi difícil encontrar o elenco?

Houve alguém que me disse que ninguém iria querer participar no meu filme. Eu pensei que seria muito triste para os atores franceses se ninguém quisesse participar. Mas ao contrário do que diziam, todos os atores que aceitaram participar no filme, fizeram-no com um tal compromisso e devoção que foi maravilhoso.

Como se processou o casting?

Tinha uma diretora de casting que me deu várias ideias de nomes, pois eu quando escrevi não pensei em ninguém em particular. Vi vários jovens, enviei o guião a 2 ou 3 atores, que recusaram, mas sem que isso fosse problemático. Procuramos outras pessoas…

E escolheu a Camélia, que não conhecia….

Sim, foi a minha diretora de casting que me falou – e ela apresentou-me muito boas atrizes do conservatório – da Camélia Jordana. Eu disse lhe que não a conhecia, que não sabia quem ela era. Bem, a Camélia veio e era tudo o que eu queria. Ela tem uma energia incrível. Ela atuou até agora em outros filmes sempre em pequenos papéis, por isso fiz muito bem em a escolher para protagonista. (risos)


Camélia Jordana

Crê que as pessoas no Irão vão poder ver o seu filme?

Eu creio que elas vão ver o filme, mas de forma escondida. Espero que alguém faça as legendas em persa (risos) e que alguém faça circular o filme nos mercados iranianos. Espero que vejam o filme no Irão. Não de maneira oficial. Oficialmente, não o vão poder ver..

Sim, mas pensa que a sociedade iraniana está mais aberta mentalmente do que há cinco anos atrás (e preparada para o filme)?

Eu dissocio sempre a sociedade iraniana do regime iraniano. São coisas completamente diferentes. (…) Efetivamente, considero que é uma sociedade que resiste muito. Que luta enormemente: contra a ditadura, contra o integrismo. Quando mostro o meu flme à diáspora iraniana, eles adoram. (risos)

Inspirou-se em algumas pessoas que conhece para certas personagens do filme? Digo isto porque há momentos em que algumas personagens têm uma tal forma de ser e são tão carinhosamente tratadas que fazem pensar que são inspiradas em alguém real… como o pai do Armand…

Sim (risos). O meu pai era comunista, mas vinha de uma família burguesa. A frase que aparece no fim do genérico foi dita pelo meu pai. (risos)

A minha mãe não era Feminista, mas sem reivindicar era. Porém, ela era de direita. Por isso os dois tinham sempre discussões políticas. Já o Armand e todas as peripécias que ocorrem quando ele começa a usar o Xador, como os tropeções, a claustrofobia, etc… tudo isso sou eu. (risos)


Os pais de Armand (Félix Moati)

É assim também um trabalho autobiográfico…

Sim. (risos). Há muito de mim no filme. Durante muitos anos eu ajudei – já não o faço agora – os imigrantes clandestinos a tratarem dos papéis para ficarem em França, e muitas dessas pessoas entram também na fita. O Afegão louro, por exemplo, eu encontrei-o na rua. Ele dormia na rua. Entretanto, ele já tem a cidadania francesa e ficamos amigos.

Pensa continuar no Cinema de ficção ou vai voltar ao documentário?

Não, eu vou continuar na ficção pois tenho a liberdade de fazer o que quero com as personagens. Num documentário temos sempre de nos manter fiéis ao protagonista. É a ética de um cineasta documental que o impele a ser fiel ao objeto retratado. Não podemos mudar a realidade. Na ficção podemos fazer o que quisermos.

Mas hoje em dia há muitos documentários que têm elementos de ficção. Híbridos, não pensa seguir essa via?

Não. O único documentário que fiz foi totalmente cinema verité. Não fiz uma única questão. Liguei a câmara apenas. Pessoalmente, penso que nem devemos colocar questões, de intervir. Gosto muito de documentários onde paramos e filmamos, sem qualquer intervenção. A única intervenção que temos é na montagem.

Falou do Billy Wilder como influência para este filme. Alguém mais?

Para este filme pensei também no Philippe de Broca, que é um cineasta francês já falecido que fez muitas comédias. Mas os seus filmes tinham um ritmo ótimo. E o ritmo é muito importante para mim. Por isso, foi Broca pelo ritmo, o Wilder pela comédia e ritmo também.

A personagem do irmão, que parte para o Iémen para encontrar um rumo … Isso acontece muito? Para si, encara isso como um grande problema em França?

Bem, como estamos a falar de ficção, sei que quero salvar essa personagem. Mas sei que na realidade há jovens assim. Em França usamos o termo desradicalização.

Desradicalizar alguém assim não é fácil. São quatro, cinco anos de trabalho. Há um Etnopsiquiatra em França, que se chama Tobie Nathan, que trabalhou com jovens como este, que se radicalizaram. Ele lançou um livro recentemente que se chama Les âmes errantes. É exatamente isso que ele constata na publicação. São precisos anos de trabalho para resgatar a pessoa. Por isso sim. É um problema, mas acho que devemos colocar antes a questão: Porquê? Porque se radicalizam estes jovens, sobretudo na sociedade francesa.

Ele coloca essa questão. Que fizemos nós [de errado]? O que é que não funciona nesta sociedade? Isto porque o maior contingente europeu do Daesh vem de França. Temos de compreender o porquê. Eu não quero justificar de forma alguma a decisão desses jovens, mas há algo que não funcionou corretamente [na sociedade francesa]. Temos de tentar perceber. Colocar esta questão.

O filme foi bem recebido em França pela imprensa. Dá importância às críticas, ou nem por isso?

(risos) É engraçado, e tenho de lhe contar isto. O responsável pela divulgação do filme à imprensa mostrou o filme aos jornalistas e depois dizia a mim, ao produtor e ao distribuidor como era a reacção da crítica. O primeiro que ele fez foi positivo. Toda a gente adorou e até houve aplausos de pé no final da exibição, o que numa apresentação à imprensa é algo raro de acontecer.

Mas eu disse que não queria saber. Ele pode mostrar ao produtor, ao distribuidor, mas eu não quero saber. E não quero saber porque o filme agrada-me. Eu fiz o filme que queria fazer. Se a imprensa gostar dele, melhor, se ela não gostar, perdoem-me, mas não há nada a fazer porque ele está terminado. Se eles acham o filme mau, ou não gostam, peço desculpa, mas já não posso fazer nada para mudar essa opinião.

Por isso prefiro não saber, não ser desestabilizada. É uma maneira também de eu me proteger… (risos).

Já tem outro projeto em que está a trabalhar?

Sim, estou no processo da escrita.

Uma comédia também?

Duas comédias. Não é fácil escrever uma comédia. Temos de encontrar um equilíbrio e é muito difícil fazer rir as pessoas.

E é mais uma comédia política?

Sim. Uma delas sim, a outra não tanto. É mais ligeira.

O novo projeto que está a preparar vai outra vez abordar o Islão?

O islamismo não, mas o integrismo sim. Há verdadeiros momentos de tragédia mas acima de tudo é uma comédia sobre o Daesh.

E espera filmar já no próximo ano?

(risos) Se eu acabar o guião a tempo, espero filmar já no próximo outono. Vou ter de escrever tudo de forma minuciosa. Não quero um trabalho de remendos. Eu penso que se não tiveres um bom guião, não vais ter um bom filme, mesmo que tenhas os melhores técnicos do mundo do outro lado.

O melhor realizador se não tiver uma história boa, não serve para nada. Sinceramente, penso que tudo começa com uma boa história.

Disse à pouco que quando escreve não pensa em nenhum ator. Porquê?

Não quero ser desiludida. Imagina que eu adoro um ator e ele diz não [a trabalhar comigo]. Ou mesmo que ele adore o papel, mas não pode participar por questões de agenda? Eu ia pensar, “ai, eu escrevi a pensar nele e ele não pode”. (risos)

Mas para o meu próximo filme posso dizer que o Félix Moati pediu-me um papel. Eu avisei-o que não tinha nenhum papel para ele, mas ele insistiu. Então criei um pequeno papel para ele, quase um cameo, e ele concordou. O problema é que essa pequena aparição tornou-se já no guião num papel bem maior. Espero que ele goste…


Numa entrevista disse que não via nem tinha televisão, mas hoje em dia muitos realizadores trabalham para ela, ou para as plataformas de streaming. Vê-se a trabalhar para elas?

Porque não? Se eu tiver liberdade. Se formos a ver, mesmo no Cinema, não se fazem muitos filmes em França sem a participação das televisões. Veja, sem a France 2 que comprou os direitos de exibir, e o Canal +, não poderíamos desenvolver este filme. Se as televisões não compram o seu filme, terás menos hipóteses de fazer outro.

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